terça-feira, 6 de junho de 2017

DISCURSO DA APOSIÇÃO DA PLACA DA TURMA 2017.1


Caros formandos e familiares, amigos, professores,
Esse momento, de aposição da placa da turma 2017.1, na faculdade de medicina, desperta muitas emoções, em função dos múltiplos significados que revela. A placa deixa para nós a lembrança perenizada da primeira e talvez mais importante conquista de vossas juventudes, de fragmentos das trajetórias sentimentais individuais e coletiva, pelos corredores, salas de aulas, ambulatórios, enfermarias, e laboratórios, e hospitais, de nossas memórias. Dos ambientes, em que ensinando e aprendendo, fomos mutuamente, nos apoiando, incentivando, erguendo, dando limites, corrigindo, despertando e renovando desejos, vocações, maturidade, para o desempenho autônomo e solidário da medicina. A placa de granito sempre movimentará em nossas mentes, ricas e vívidas memórias afetivas, de vocês, e de todos que em relação direta com vocês compuseram diariamente nossa própria história institucional.
Nesse enigmático ambiente, estranho e familiar lugar de tantas e importantes memórias afetivas, a universidade, vamos continuamente amadurecendo a personalidade e as habilidades profissionais, organizando limites éticos à natureza quase indomável da juventude ou ampliando os limites da autoconfiança aos inibidos pelo rigor da educação familiar. Nesse momento, em vossas mentes, os conflitos da juventude já estão em processo de transformação nas mais importantes lembranças afetivas para o futuro. Assim deve ser para que tenha o significado da maturidade emocional, e não apenas o da maturidade biológica. E em nossas mentes, de docentes, enquanto convivemos com os jóvens, damos continuidade à reparação de nossas próprias juventudes. No entanto, o medo que temos da autonomia, deve ser superado pelo compromisso com a amizade, a responsabilidade, a empatia, a solidariedade, sentimentos e atitudes que conferem dignidade à nossa vida profissional e afetiva.
Por isso, reunimos em um só dia tantos agradecimentos, com tantos significados. Por que sabemos que somos o resultado de um empenho planejado, conjugado, de afetos, conhecimentos, disponibilidades, reconhecimentos, e habilidades de múltiplos profissionais, para que ao final possamos dizer: conseguimos, consegui, obrigado.
Esse é o dia mais importante para a medicina, o dia sagrado dos agradecimentos. Dia de agradecer o ensinamento da humildade, da admissão dos nossos limites, na figura do cadáver, símbolo da anatomia, da medicina como arte, como violação necessária, enriquecedora da humanidade; dia de reverenciar o cuidado, na figura da instituição hospitalar, simbólica do esforço humanitário para aliviar as piores dores do corpo vivo, e da mente, em sofrimento; dia de reverenciar o conhecimento e agradecer à comunidade acadêmica, símbolo do desejo da imortalidade, representados pela autonomia conjugada à responsabilidade social, pela partilha, pela comunhão do mais sagrado dos bens da civilização, o saber.
Finalmente, o último dos significados: dia de retribuição, do agradecimento, a vocês, e seus familiares, pela construção dessas possibilidades mútuas de reparação, de maturação, de encontro com o que há de mais humano em nós: compreender, e buscar, incessantemente, meios para o alivio do sofrimento.
Essa placa representa, portanto, nossa história, a de vocês, a minha, a de muitos ausentes, a de todos os presentes. Essa é uma pedra feita de histórias e saudades.



sexta-feira, 27 de maio de 2016

MENSAGEM AOS FORMANDOS DA TURMA LXVI DA FAMED-UFAL


Meus queridos formandos da LXVI turma de medicina da UFAL
Ontem associei à lembrança no futuro, da turma de vocês, ao ano em que reiniciamos a recuperação do HU como espaço privilegiado de ensino. Hoje, associo a outras situações não menos importantes: 2016 será lembrado como o ano em que o Brasil enfrentou a pior crise moral, politica, e econômica após a redemocratização; o ano em que nossa querida coordenadora, a professora Yasmin finalizou o seu mandato, deixando também um legado importante de dedicação à gestão da formação médica; o ano em que iniciou a primeira turma do curso de medicina de Arapiraca.
Hoje, estamos reunidos para celebrar o dia mais especial da juventude de vocês, e que abre novas portas para tantos outros momentos especiais.
Para alguns, com identificação plena com a medicina, o sonho foi colorido, como um vôo fácil e prazeroso; para outros, um desafio permanente, a identificação foi sendo construída, devagar, com a superação, muitas vezes dolorida, de obstáculos.
Más, o sonho foi cumprido, e estamos aqui para celebrar com vocês, a primeira autorização para a prática profissional e cidadã, que deverá ser ainda referendada pelo conselho profissional.
Para chegar a esse dia, e continuar sonhando, muitas vidas se entrecruzaram, e muitas histórias foram entretecidas pelo conhecido e familiar, mas também pelo inesperado, o desconhecido, o invulgar.
O poeta mineiro, Murilo Mendes, disse em um de seus certeiros poemas: Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos. E a ele peço licença para poetizar com as circunstâncias e personagens que nos ajudam, familiares ou incógnitos, a construir a escada para os nossos sonhos, e nossas vidas.
Somos feitos do entrecruzamento dos fios dos desejos de quem nos é familiar, e pelo desconhecido, que preferimos chamar de destino.
Pensem em quantas pessoas, em diferentes circunstâncias, foram necessárias para a construção de cada degrau da escada, até chegar aqui:
Quem preparou o café da manhã, e aguardou paciente o retorno no fim do dia com a mesa posta;
Quem vos despertou com um bom dia suave, um beijo na face, às vezes cantando, e deixou a roupa pronta para uso e no fim do dia recolheu tudo novamente;
Quem aplaudiu cada vitória, e apoiou quando tudo parecia contrário;
Quem espelhou atitudes, quem indicou atalhos, corrigiu o percurso;
Quem entendeu vossos desejos, e quando necessário soube dizer não;
Quem observou o crescimento das asas, e agora assiste ao vôo autônomo;
Quem compartilhou bons momentos, ou aconselhou nas horas difíceis;
Quem incentivou em silêncio e colaborou nos bastidores para que a entrada em cena, hoje, fosse especial;
Quem foi o último companheiro capaz de apaziguar as angústias quando ninguém mais, dotado de razão conseguiu, e se aconchegou no colo latindo ou ronronando felicidades que a ciência não decifra nem compreende;
Todos esses, familiares, vizinhos, amigos, amores, e as dádivas da natureza, compuseram o teatro possível para a escalada firme e suave;
Estenderam a mão, acolheram com o abraço mais afetuoso, beijaram transmitindo confiança, dançaram todos juntos, em compassos diferentes, a ciranda que ensinou os códigos e os laços de familiaridade; ensinaram o valor da amizade, da confiança, da cooperação, da comunhão de afetos, sem valor de moeda.
Afinal, ninguém aprende a andar sozinho, e ninguém sobrevive só.
Os fios e nós que compõem a malha das relações que conta a história de nossas vidas são incontáveis e complexos, alguns invisíveis aos olhos acostumados com o familiar.
Contar os dilemas, narrar os sofrimentos, pintar as angústias, arquivar os temores, expor os gozos, fotografar os personagens de um único dia do HGE se traduziria em perplexidade e assombro, que preferimos nos distanciar;
Quantos pela competição desleal, pelos privilégios, pela trapaça, no país da desigualdade social, foram forçados a abdicar do sonho de ser médico;
Esses compõem os vazios, anônimos, desconhecidos e assustadores, da malha de nossas histórias.
Quantos outros desconhecidos ao longo dos seis anos de formação abriram o livro da vida para que pudessemos entender os limites da escalada;
Quantas historias foram ouvidas, quantos sintomas decifrados, quantos enigmas em cada pessoa, em cada vida, retornadas à distância do anonimato após a alta;
E ficamos sem entender certas nostalgias, certas saudades, sem nomes, que perturbam nosso noturno espírito racional;
Quantos sem as mesmas oportunidades de uma vida saudável depositaram em nossas mãos a esperança de continuar seus próprios e limitados sonhos, por mais um tempo, precioso, por menor que fosse;
Nosso caminho está marcado pela ética da solidariedade profissional para com os que, fragilizados pelo sofrimento, duvidam da esperança de poder continuar seus próprios sonhos.
Ninguém se torna médico só, nem deve alimentar a ilusão da onipotência profissional;
Queremos ser bons, e ter nossa ação reconhecida como mérito pessoal,
Más, com a licença poética de Brecht digo que:
Em vez de sermos apenas bons,
Esforcemo-nos para criar um estado de coisas
Que torne possível a bondade
Ou melhor: que a torne supérflua.
Devemos compreender que nossa vida também participa dos fios das malhas de outras vidas, e podemos contribuir para transformar o trabalho em saúde, e o pequeno mundo egoísta ao nosso redor com ações de cooperação, solidariedade e respeito à integridade física e psíquica, individual e coletiva, considerando a dignidade humana como referencial para a garantia de direitos.
Por isso, e para isso, é saudável partir, criar novos laços, e ampliar a compreensão do mundo, em outros contextos,
Para ser adulto, artífice de vossos próprios desejos, será preciso ousar e continuar a escalada sozinho, longe do conforto do familiar e conhecido, e aventurar-se à experimentação do mundo e da ciência, incorporando e tornando familiar cada novo encontro, cada deslumbramento com o conhecimento.
O que vamos tornando familiar nos é possível aplicar como bondade solidária, e isso nos liberta do destino para a escalada em busca de novo conhecimento.
Pais, familiares, amigos, criamos juntos poemas cheios de humanidade
Resta-nos dizer adeus, com mais  uma licença poética, dessa vez a Fernando Pessoa:

Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide, de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

Formandos da XLVIII turma da FAMED/UFAL, é hora de partir.
Boa sorte em suas futuras escolhas.






SOBRE O SIGNIFICADO DA PLACA DE FORMATURA



Qual o significado desse momento especial, que implica na aposição de uma placa comemorativa?
Há algo de ancestral, de mitológico, de identificação com imagens e vozes que ecoam e se multiplicam há mais de dois mil anos, representando e contando a mesma história: a da formação para o cuidado de um ser humano pelo outro.
A medicina ocidental começa com o registro de um documento indicativo da regulação ética da prática, apresentado por Hipócrates. Más, em outras culturas começa muito antes, e na história da humanidade começa com o ato de cuidar quando, talvez, alguém ajudou pela primeira vez no nascimento de uma criança, um ancião foi protegido de ser devorado, um emplastro de folhas foi aplicado sobre um ferimento, talvez uma simples topada.
Em cada uma dessas ações a humanidade se desenvolvia, cada ação era um passo civilizatório acumulado, equivalente a milhares de anos. E tudo era registrado na pedra, para depois ser contado e recontado. Era criado então o mito, e o herói.
Hoje, continuamos registrando na pedra, nossos feitos, em momentos simbólicos, em rituais coletivos de passagem.
No último ano do curso os estudantes estão mais adultos, e com o registro na pedra afirmam: passamos aqui, como outros vem fazendo há milhares de anos; lembrem-se de nós, como fomos, jovens, belos, sonhadores, audaciosos, amorosos, fraternos. Somos a promessa!
Com todos esses outros registros, em sequência, damos o testemunho do nosso compromisso com a formação em saúde para um trabalho futuro com a qualidade que corresponde ao nosso sonho iniciado seis anos atrás.
E nós, professores, também, repetimos como os ancestrais, consagrando o registro dos estudantes, na pedra, e permanecemos aqui contando aos futuros aspirantes a médicos, sempre sonhadores , sobre as qualidades de cada um que já partiu para a autonomia profissional.
Esse registro guarda, principalmente, o brilho da juventude e do sonho de cada um.
E é assim que sempre nos lembraremos, da força por trás do brilho que os move para cuidar dos outros.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Aos médicos do futuro - turma 2015.2


Estamos reunidos para conferir o grau de bacharel em medicina e homenagear os novos médicos egressos do curso de medicina da UFAL com a nossa presença, nossas palavras, nossos afetos e nosso respeito.
Nesse instante, pousamos nossos olhares mais afetuosos, nossas mãos mais suaves, os abraçamos no movimento último de aproximá-los ao peito para guardar um pouco do perfume e da doçura de cada um. E com a segurança de educadores cônscios de nossa missão e do trabalho bem feito, possamos num firme impulso lança-los para a vida autônoma, profissional, adulta, responsável, para que voem alto no limite dos seus próprios desejos.
Para o voo alto e seguro, aprendam desde já a desvencilhar-se do peso do passado, de alguma desavença, dos conflitos inerentes à condição humana e necessários ao desenvolvimento do caráter, para que a família ampliada e constituída durante seis anos de convivência diária, permaneça alimentada com a lembrança do melhor de cada um.  Que toda experiência, tudo que foi vivido junto, seja o combustível da nova etapa que iniciará tão logo estejam habilitados legalmente para o exercício ético da medicina.
Em tempos de embrutecimento do cotidiano, com as marcas do cinismo, do egoísmo e indiferença, do consumismo vazio, da corrupção, em que a desconfiança e o medo governam nossos modos de relações, temos a obrigação de contribuir para o restabelecimento dos laços sociais, intra e interfamiliares admitindo as novas reconfigurações, os comunitários, e os laços interprofissionais, e entre os povos e nações.   
 Este legado embrutecido das gerações anteriores, também deve ser deixado para trás, e com o poder da juventude, com a força do sonho, resistir à barbárie da política brasileira e da financeirização da vida, mantendo em movimento a roda da utopia.
Acreditem, o novo sempre vence!
E o sonho de vocês, apenas iniciou em sua aparência de realidade. Muito há ainda por conquistar, por construir juntos, por compartilhar, por responsabilizar-se.
Precisamos mudar nossas práticas e discursos: sem abandonar a compaixão precisamos criar e priorizar práticas solidárias, sem negar o presente, responsabilizarmo-nos pelo futuro, pelo meio ambiente, pelos povos e agrupamentos humanos em situação de vulnerabilidade.
A tecnologia aliada à ciência oferecerá a vocês, profissionais do futuro, artefatos cada vez mais sofisticados para o prolongamento da vida, transformação do corpo, para a seleção e a modificação do que hoje chamamos de vida humana, para o alivio de males que nos aflige há séculos, no entanto, a fronteira com a eugenia, com a manipulação de células, tecidos, embriões para fins mercadológicos, e de controle populacional, impõe que priorizem e continuem o desenvolvimento individual e profissional de competências éticas. A dignidade humana nos posiciona sempre como fins e nunca como meios.
A vaidade, a ambição, estarão à espreita, sutilmente, testando a ética e a imaturidade profissional, em ambientes de forte pressão mercadológica e política. E a adesão fácil às tendências, ao conformismo, ao oportunismo, poderá vir a ser uma carga que impedirá voos de realização de sonhos individuais com compromisso social, e fortalecerá as teias que nos aprisionam na cadeia do individualismo, e da falsa segurança.
A tomada de decisão deverá ser pautada em balizas éticas apoiadas nos direitos humanos, no plano individual e social, na clínica e na pesquisa com humanos e animais, na relação com os colegas e com toda a equipe de trabalho, na consideração da alocação de recursos na saúde para os mais vulneráveis, e na responsabilidade com as futuras gerações, como missão de nossos atos presentes.
Não esperem a vida melhor como dádiva, esta já lhes foi dada. E garanto, é bem melhor que a vida de dois terços da população brasileira. Agora, é trabalhar juntos para que esta dádiva seja o presente de vocês profissionais da saúde, médicos do corpo e da alma, para toda a humanidade, na forma de cuidados éticos. Ainda que a humanidade esteja contida nas fronteiras de um indivíduo, uma clínica, um hospital, uma comunidade, ou toda uma nação.
Cada um de vocês é uma síntese da humanidade, e nisso reside a dignidade humana, o direito de ser livre para escolher, opinar, e ser respeitado independente da herança cultural, genética.
Cada um de nós encerra o patrimônio genético e cultural da humanidade, com a diversidade e a expressão que faz a todos singulares.  Portanto, devemos o respeito à autonomia individual e cultural dos grupos na tomada de decisões sobre o início, a continuidade, e o fim da vida.
Vivemos em uma sociedade secularizada, onde o Estado é laico, e a aprendizagem sobre os direitos humanos é um desafio para exercício cotidiano profissional e cidadão.
Portanto, os preconceitos que limitam a nossa prática profissional são o terceiro peso a abandonarmos no caminho da construção de uma ética profissional que considere o ser humano como fim.
Para nós, vocês são a geração do futuro, mas o futuro não acaba em vocês. Preparem o melhor presente para o melhor ambiente futuro para seus filhos, e os filhos de seus amigos, e os filhos de seus filhos e de todos que dividirão convosco a passagem pela vida, nesta casa universal que a cada dia se torna menor, e chamamos Terra, e a viagem lhes será sempre leve, serena.
Lembrem-se que a responsabilidade profissional de aliviar a dor do outro implica também na responsabilidade cidadã da construção de um mundo melhor para todos.
Deste modo, construirão um mundo melhor para vocês também.
Um abraço fraterno a todos.



terça-feira, 7 de julho de 2015

DISCURSO AOS FORMANDOS DE MEDICINA DA UFAL - TURMA 2015.1


É com imenso prazer que vos falo nesta cerimônia de colação de grau para homenagear a nova turma de bacharéis em medicina. Como diretor da unidade, porto o símbolo da responsabilidade, o dever do zelo ético, pelo cuidado compartilhado para com o ensino técnico e o humanizado, e o bem estar de todos que compõem a Faculdade de medicina da UFAL. E em nome de todos os demais docentes e técnicos da FAMED, presentes e ausentes, com o calor das palavras e das emoções, saudamos os formandos e mantemos vivo, nesta cerimônia, o fogo do conhecimento mais antigo sobre o cuidado ético da saúde humana. Vivo desde que alguém precisou do cuidado de outro e este cuidado foi repetido até transformar-se em técnica, em conhecimento, sendo repassado por gerações de escravos, curandeiros, pitonisas, bruxas, cirurgiões-barbeiros, pajés, charlatães, até transformar-se no que conhecemos como a medicina biotecnológica de hoje. Conhecimento vivo, de investigação e transmissão oral no inicio, artesanal na idade média, empírica desde Descartes, e por fim, em nossos dias, tecnológico-digital. Nesta sumaríssima história da medicina e do ensino médico podemos admitir que a medicina nunca foi uma só, o ensino médico modificou-se com os avanços sociais e educacionais, e a ética para a formação e para o exercício da medicina também teve que se adaptar aos desafios impostos por estas transformações. De uma relação monárquica com os pacientes em que a palavra do médico era soberana, podendo, no entanto, ser punido por seus erros mais grosseiros, vigente desde Hipócrates até meados do século XX, a medicina passou a dialogar com os demais profissionais da saúde, em um modelo oligárquico para administrar a relação médico-paciente, sem considerar os principais interessados que ainda eram submissos à ordem profissional, mantendo este modelo até a consternação mundial com o abuso perpetrado por médicos no regime nazista, e em outras situações históricas envolvendo a pesquisa com seres humanos. É somente na segunda metade do século XX que por meio de lutas sociais por direitos humanos, gerando pactos e declarações nacionais e universais, a humanidade, na condição de vulnerabilidade, tem seus direitos minimamente assegurados, tais como autonomia para decidir sobre o tratamento proposto, pelo prognóstico, pelo inicio e fim da vida, e a justiça relativa à distribuição de recursos à saúde que tem garantido qualidade de vida a grupos antes condenados à escuridão das diferentes fases e faces do preconceito.
A medicina, profissão de tradição milenar humanitária tem tentado se adaptar, não sem sangrar e sofrer, a estas transformações que exigem o esforço corporativo de suas instituições e lideranças, no campo da técnica e do ensino, para reconhecer seus limites éticos no tempo da globalização, do interprofissionalismo, do individualismo consumista, do moralismo encobridor da ética perversa, e transformar-se para reconhecer que os direitos dos pacientes, em sua condição de fragilidade, são mais importantes que os de subjugá-los a preceitos e fórmulas adaptadas ao nosso tempo, e que serão modificadas permanentemente, como a própria vida. Assim, o CFM tem participado e muitas vezes liderado, e compartilhado de decisões que afetam o nosso bem estar, nossos modos de convivência com o próprio corpo e com os demais, posicionando-se a favor do aborto terapêutico, do consentimento informado na pesquisa e na relação com o paciente, do testamento vital, da cirurgia de transexualidade, da pesquisa com células tronco, do uso compassivo de canabidiol para crianças com epilepsia refratária a outros tratamentos.
Temos, no entanto, que enfrentar outros aspectos da vida pessoal e profissional, dependentes da necessidade de equilíbrio entre a proteção pessoal e do paciente, das comunidades e da nação, retomados com o processo de redemocratização e tornados campo de conflitos em função do desenvolvimento mesmo das profissões, da ciência e da tecnologia, e da hegemonia do capital em sua face atual neoliberal que financeiriza a vida.
 É um desafio permanente promover a maturidade profissional para compreender as mudanças mais gerais nos códigos de leis que devem proteger toda a nação, e assentando-se em bases democráticas garantir a constituição do laço social ampliando direitos e a proteção necessária aos mais vulneráveis, no caso da medicina e demais profissões de saúde a proteção prioritária aos grupos com vulnerabilidade biologica, economica, social, adaptando os códigos específicos corporativos às novas realidades.
Neste sentido, a atenção primária às comunidades carentes é prioridade e devemos concentrar esforços para sua ampliação com a qualidade necessária, realidade ainda distante. É nossa responsabilidade apoiar a qualificação dos preceptores da rede SUS, e ampliar a presença de graduandos e residentes na atenção primária. Bem como, para o exercício interprofissional solidário e de garantia da autonomia dos usuários devemos investir na formação e prática que ultrapasse a ética profissional dos deveres para considerar a reflexão sobre a vida em uma perspectiva bioética latinoamericana.
Portanto, caros formandos a medicina nunca foi exercida de forma igual em todas as etapas da civilização e regiões do planeta, e hoje o desafio maior é encarar a fragilidade da vida individual e social, e com a força humanitária que sempre guiou o exercício profissional, entender que o corpo vivo do qual falamos é o corpo social, o trabalho para a vida é o solidário e interprofissional, e a ética profissional deve estar subjugada à ética da vida e do respeito ao outro.
Se não conseguimos nestes seis anos faze-los compreender estes novos papéis é porque a medicina não apresenta unidade em seus interesses, estando ainda subjugada aos interesses comerciais que reduzem a vida a bens negociáveis. Que não seja esta a última aprendizagem sobre o exercício ético profissional, e não entendam como conselho, mas sim como advertência para que não sofram as consequências no próprio corpo da inflexibilidade de quem não consegue adaptar-se ao mundo do trabalho em saúde como é hoje, e se refugia no isolamento arrogante de papéis do passado.
A universidade para os discentes é como um conto de fadas muito diferente do futuro mundo do trabalho. Nela entramos como em um livro mágico e conhecemos outros personagens dando sentido a enredos individuais que se entrelaçam em uma história maior, que conta a historia de cada um de nós. Tramas de amizades, amores, intrigas, decepções, revelações, autodescobertas, entre amigos, paixões e revoltas com os professores, aprendizagem de autonomia e papéis adultos renegociados diariamente com os pais e amigos, preparatórios para as despedidas como esta que acontece hoje. Enquanto celebramos a conquista dizemos que estamos prontos para a partida, para deixá-los partir. Ficamos com a lembrança da marca singular que cada um conferiu neste enredo de trocas afetivas que permitiu a aprendizagem dos limites de uma profissão e de si.
Cabe a vocês, jovens médicos um legado de conhecimento milenar para viver com a mesma alegria vivida na universidade, e a partir de agora contribuir para transformar as práticas do cuidado em saúde em relações que promovam uma sociedade igualitária e eticamente saudável.
Parabéns a todos, e aos familiares, pela conquista. Sucesso e felicidade em suas futuras escolhas.




terça-feira, 13 de janeiro de 2015

DISCURSO NO ATO DE COLAÇÃO DE GRAU DE BACHAREL EM MEDICINA - TURMA 2014.2


DIA: 18/12/2014
É com a satisfação do dever cumprido, que vos apresento para o trabalho social, para a autonomia profissional e pessoal, para a responsabilidade cidadã, para o cuidado ético e humanizado dos outros e de si, a turma de bacharéis em medicina 2014.2.
A Faculdade de Medicina sente-se orgulhosa deste dia, por termos conduzido e apoiado o desenvolvimento de competências técnicas profissionais e ético-humanitárias a este grupo de jovens idealistas.
Com a atenção vigilante e a mão amiga de docentes comprometidos com a responsabilidade técnica de formar médicos, acrescentamos também à formação valores e princípios que abrem caminhos para uma prática médica solidária.
Jovens no inicio da formação e ainda hoje, aprenderam principalmente que, na era da velocidade, do descartável, da hegemonia da técnica e da ciência sobre os valores espirituais, o trabalho em equipe, o respeito ao outro, o privilégio da escuta na comunicação, proporcionam respostas, que no contexto apropriado, são tão satisfatórias e complexas quanto qualquer exame de ressonância magnética em contextos hospitalares. E mais ainda, que nos complexos hospitalares é preciso saber dar a boa e a má noticia; que o cuidado é mais eficaz quando as ações profissionais autônomas organizam-se de maneira dialógica, em torno de um objetivo comum: a pessoa sob cuidado, suplantando a vaidade e a ambição, quando são regidas com a melodia suave da compreensão mútua interprofissional.
Conviveram e aprenderam com a dura realidade das comunidades pobres na periferia de Maceió, mal assistidas em seus direitos inalienáveis de viver com dignidade: moradia, saneamento, segurança, educação, saúde, lazer. Esta experiência deverá ter servido como alicerce à crítica social, para o desenvolvimento de valores solidários e compassivos, e para a ação política que enseje a redução da desigualdade social.
Esta foi a nossa missão, cumprida com rigor nos diferentes contextos: HGE, Hospital Portugal Ramalho, Hospital do açúcar, Maternidade N. Sra. Da Guia, Hospital Artur Ramos, Hospital Universitário, Unidades Básicas de Saúde do município de Maceió, Arapiraca, Penedo, Branquinha, São José da Lage, Marechal Deodoro. Diferentes contextos, cenários, complexidade de atenção, equipes, diferentes comunidades, usuários, com suas diferentes histórias de vida e de modos de sobreviver e adoecer. Lugares de convivência harmoniosa e solidária com docentes e preceptores, usuários e técnicos hoje aqui representados, e ao longo da semana homenageados, exemplos para lembrar por toda a vida.
O Curso de Graduação em Medicina da UFAL tem como perfil do formando, o médico com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, com competência para atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano.
Nosso maior desafio tem sido responder às críticas que dizem respeito à desumanização da medicina. Não fugimos à nossa responsabilidade de mudar e, desafiar aos demais setores da saúde, para olhar de frente também suas próprias práticas de cuidados, e desafiar também a sociedade que permanece acrítica diante de decisões ou da falta delas que afetam diretamente a qualidade do ambiente e da vida individual, familiar e comunitária. Não basta reformar currículos médicos, sem reformar os demais, não basta importar médicos sem oferecer estrutura que qualifique o cuidado, não basta abrir escolas médicas, sem a devida certificação da qualidade do ensino. Somos todos responsáveis por esta nação corrompida, usurpada, atingida gravemente nos princípios basilares da cidadania.  Não apenas os médicos, más todos os cidadãos devem participar da cura desta ferida aberta que corrompe todos os alicerces e ameaça a democracia.
Cumprimos a nossa parte, e hoje entregamos à sociedade médicos com competência e consciência crítica da realidade, capazes de escolhas entendendo que em suas trajetórias individuais, suas ações afetam e são afetadas pelas escolhas dos demais, que somos um todo complexo e indissociável, que é possível refazer o tecido social com o cultivo dos valores éticos comunitários e da espiritualidade necessária nos mínimos atos cotidianos, abandonando o antigo jeitinho brasileiro de levar vantagem em tudo.
Ou continuaremos no caminho da barbárie em que vemos o outro como inimigo e o meio ambiente como um imenso depósito do lixo de nosso egoísmo; aumentaremos nossos muros, grades de proteção, ampliaremos nossos mecanismos de vigilância, contrataremos cada vez mais exércitos de seguranças. E ainda assim veremos que nada disso nos afastará da insegurança e dos efeitos perversos da indiferença.
Senhores, senhoras, meus caros formandos, sabemos que a universidade é uma experiência curta, transitória, de forte influência no desenvolvimento do caráter, más não é a única, nem definitiva. A responsabilidade da formação e da consequência dos atos de cada um dos formandos desta turma e de qualquer outro formando neste país, é de cada um de nós, más a partir de hoje é principalmente deles.
Nós somos os resultados de nossas escolhas. Caros formandos vocês escolheram ser médicos, e nós os apoiamos durante seis longos e breves anos. Honrem a promessa hipocrática, defendam a democracia, a justiça, os direitos humanos, e sejam prósperos e felizes.
Muito obrigado aos familiares pela confiança, e a vocês pela aprendizagem mútua em todos estes anos de convivência.



                                    




domingo, 7 de dezembro de 2014

O TRABALHO SOLITÁRIO DA GESTÃO E A TEORIA MORAL DE KOHLBERG



                           Toda gestão é considerada como desafiadora, as relações humanas constituindo-se como seu principal desafio. Além disso, o trabalho solitário de responder das demandas dos níveis superiores hierárquicos, à burocracia, ao cumprimento de rituais, muitas vezes destituídos de outro sentido que não seja amargar horas a fio a companhia de outros colegas que mais parecem saídos de um almanaque antigo, e mais atualmente, ao cada vez mais imperioso e obrigatório apelo de colegas ou grupos articulados em defesa de algum interesse particular, ou de estudantes mimados e que não sabem mais reconhecer os limites e a vida como uma infinita teia de relações, afetos, interesses comuns, faz do trabalho na gestão de uma escola médica uma necessidade de aperfeiçoamento pessoal, no sentido ético e moral. Para responder a cada semideus com seus propósitos individuais, aos discursos egoístas mal dissimulados de altruísmos repentinos, às práticas cotidianas de burlar a responsabilidade de educar como tarefa civilizatória e não reprodutora apenas de valores de dominação e perpetuação de uma classe ou categoria sobre outra(s), até a mais simplória e inútil, pelo menos para mim, tentativa de ludibriar com promessas de planos de atividades, e atividades sem planos, desde que coerentes com o que pensam ser o que o gestor gostaria de ouvir, para ter seu plano individual de ação, geralmente egoísta, atendido sem restrições. O plano político-pedagógico e a missão da instituição são usados como a própria constituição brasileira, um símbolo necessário para dar corpo à unidade nacional, más um ente abstrato e mal interpretado em favor de interesses particulares, apresentados então como missão e planos individuais que não se enodam para dar conta a um corpo institucional integrado: projetos individuais que se somam mas não se articulam, não se tocam, não se interpenetram para constituir uma unidade, autônoma, composta por um projeto maior desenhado em sua missão e seu plano político-pedagógico que deve ser considerado e constituído como um plano ético. O plano ético, maior, poderá nos direcionar para responder aos interesses particulares, enodados, compartilhados, em comunhão. Planos dissociados, interesses particulares, induzem ainda à perpetuação de concepções limitadas, muitas vezes errôneas ou reflexos de interesses corporativos, de corpo e saúde, que se refletem em práticas docentes fragmentadas, em uma educação em que o exemplo moral do docente e a responsabilidade da instituição são percebidos pelos discentes como uma máscara necessária para adentrar no mundo adulto, do trabalho, com cinismo, dissimulação, e uma boa dose de indigência moral.
Kohlberg desenvolveu uma teoria da moral escalonando-a em estágios evolutivos que incorporam os anteriores até o estágio de transcendência em que a vida comunitária e a espiritualidade determinam os valores de uma ação moral, para que em comunhão, compartilhemos nossos conhecimentos, organizemos as nossas ações, de mãos dadas, como uma só voz, um só corpo, beneficiário e beneficiando de um projeto comum. Não é mais possível, acreditar apenas nas palavras e nas meias ações que encobrem os interesses particulares, egoístas, fontes de sofrimento pessoal e de efeitos morais públicos que desfazem tijolo a tijolo, o edifício dos ideais iluministas de civilização pela educação e pela ciência.
Por isso, o gestor deve ser comprometido com sua própria formação moral e ética, e responsabilizar-se diante da demanda individual, egoísta, oferecendo respostas, compatíveis com um nível acima do estágio moral apresentado: surpreender, abrir espaço à perplexidade, à reflexão, devolver como um presente a negação, e o espanto.