O sucesso na venda de uma mercadoria
começa antes da sua comercialização direta nos supermercados da economia
neoliberal. Portanto, de inicio, contrate agências de marketing cujo nome
esteja associado a signos mesmerizantes como corações intensamente vermelhos e
pulsantes, muita prata e dourado nas avenidas, e crianças, pais e avós em
harmonia, projetados em imagens conjugadas a jingles e fragmentos de canções
populares. Prometa, esta ficção higienizada como futuro, ainda que tudo isso já
esteja associado a seus mais perversos concorrentes. Sua imagem, de
trabalhador, empresário, ou intelectual, estará protegida no imaginário popular
como o infatigável progressista e defensor dos direitos dos humildes e
desvalidos.
Agências de marketing não tem
ideologia, tem interesses mercadológicos, ao contrário de você. Você não vende
mercadorias, você vende satisfação e ilusões.
E nunca esqueça que o concorrente de
hoje será o amigo de amanhã que, nas câmaras e assembleias, definirá a tabela
de variação de preços, a margem de lucro, e a indicação de membros na cozinha
do poder. O que importa é que você tenha mais tempo para divulgar sua imagem
doce e eficaz na mídia digital, enquanto as bases, os quadros, os cabos, pouco
importando como sejam denominados aqueles que mais parecem mascates, vendem
esta ilusão por você nas periferias.
Antecipado o miraculoso produto,
higienizado, saneado, perfeito, é hora de compor a equipe da cozinha virtual.
Nomeie para chef um economista, ele saberá como poupar gastos excessivos, falar
uma linguagem cientifica que convence pelo aturdimento e pelo mesmo motivo de
sua eleição, a estultícia do eleitorado, vítima das mesmas sabotagens e
armadilhas preparadas para a educação modeladora de consumidores, inclusive ou
principalmente, do que você entende por saúde.
Estabeleça princípios ou passos para
a receita não azedar: redução de gastos implica em priorizar as tecnologias
leves, próprias da atenção primária, e repassar para os representantes do
capital privado tudo que for considerado de complexidade terciária e de alto
custo. Não se esqueça de repetir estes princípios até que sejam aceitos como a
cobertura doce do bolo, solado, por baixo. Afinal, você sabe que não importa o
nível de atenção, os gastos são vultosos e se equiparam. Só você sabe que o que
realmente importa é a transfusão de sangue financeiro para o capital privado,
seus atuais aliados. Os corações pulsam vermelhos, na mesma sintonia, como na
propaganda eleitoral.
A receita está iniciando. Agora
nomeie os auxiliares do chef, de preferência teóricos, vaidosos, ambiciosos, alguns
idealistas, em geral mal remunerados na academia ou nos serviços, sem ou com
pouca experiência prática, e técnicos, vaidosos, ambiciosos, e autoritários,
misture-os e aguarde que fermente, e borbulhem conflitos. Não se preocupe, você
conseguirá atingir um bom resultado: muitas políticas, e ações para serem
cumpridas. Quanto mais confusas, descontínuas e fragmentárias, melhor. Enquanto
estão ocupados em fazer valer ou cumprir, cada um, o único ingrediente que conhecem,
esquecem o principal que você guarda para financiar as receitas nobres, para
degustar o caviar e o Moet Chandon com seus novos amigos, os únicos, eficientes
e salvadores da incompetência da gestão pública na saúde.
Dê então o segundo passo na receita,
desqualifique os gestores da saúde pública, atribuindo-lhes a sua própria
incompetência e amoralidade. Não importa, a maioria crê que mesmo que você
entregue a gestão administrativa e financeira para grupos privados, eles serão
chamados a permanecer no poder. Voce já aprendeu que no mundo unidirecionado
pelo capitalismo neoliberal as pessoas se adaptam a qualquer situação, pois não
há ideologia. Você nem precisou pedir para que eles afirmassem isso, seus
auxiliares compreenderam que para sobreviver no poder seria necessário repetir
que a ideologia não existe. Nem mesmo a razão existe mais, o poder da técnica,
o produtivismo, o imediatismo, o utilitarismo a torna desnecessária. Alguns idealistas
abandonarão o iate que você construiu para se divertir. Tolos, a fila de
oportunistas e idealistas é superior aquela do SUS, que você tanto usou para
desqualificar em épocas passadas os amigos de hoje.
E haja com sutileza para que a massa
fique macia (ou mansa) e não azede, não reaja contra você. Para entregar os
hospitais universitários para os gananciosos que estão sempre ao seu redor
disputando fatias, faça com que a própria comunidade acadêmica tome a decisão
por você. Assim, se mais adiante o plano não der certo, você não comprometerá
seus planos de perpetuação no poder e de proteção dos direitos dos amigos de
caviar e champanhe. A comunidade universitária está feliz com seu plano de
expansão de vagas, ainda que de maneira degradada. Voce criou muitas vagas docentes,
criou cotas, e a maioria, jovens ou antigos, que contribuiu para sua eleição,
acreditou em você, está paralisada, a meio caminho, entre o ressentimento e a
falta de opção partidária-ideológica. Lembre-se, ideologia não mais existe. E
deixe que a própria classe média divulgue que os partidos menores, éticos, sua
principal base de crescimento pessoal e partidário, são revolucionários, somente
pelas armas, e não por projetos reais, democráticos e soberanos de construção
do país.
Para que a receita não demore,
elimine os processos licitatórios de compras de medicamentos, equipamentos,
serviços e produtos, em geral. Denúncias futuras de corrupção servirão para a
correção exemplar e divulgação da face ética de sua autoridade. Além do mais, você
poderá afirmar que foi a incompetente e subserviente comunidade universitária
que decidiu que a gestão financeira dos hospitais universitários fosse entregue
à ganância dos grupos privados.
Como dono do restaurante, você é um
gênio. Falta agora, contratar quem vai servir as fatias do bolo solado e azedo
com saborosa cobertura de chocolate. Voce precisa de maitres, garçons e
garçonetes, cumins, toda a equipe que distribui seus produtos, e que não
agregue custos. Primeiro, lembre-se que apesar da violência, a população cresce
a olhos vistos, você tem um exercito pronto a lhe servir e substituir os
ineficientes. Segundo, lembre-se de projetar a sua ineficiência e a de seus
atuais amigos, responsáveis pela rapinagem do tesouro público, em todos os
níveis hierárquicos criando uma rede de desqualificação do caráter do
trabalhador público. Divulgue que são preguiçosos, e de moral duvidosa. Depois,
contrate com vínculo precário, sem garantias trabalhistas, você está acima da
constituição. O resto é ideologia, não conta.
E conceda franquias da sua cozinha
para seus amigos políticos e empresários para a formação dos profissionais que
reduzirão os impactos dos efeitos tóxicos das fatias do seu bolo azedo. Más,
não se preocupe com a qualidade técnica, pois o povo ainda lhe agradecerá pela
fatia e pela presença do médico em sua casa, a cereja do bolo, não importando
se esta será ou não mais um agente tóxico em suas vidas.
Crie um exército de reserva de médicos,
depois reduza salários, garantias, e use-os para sua promoção na mídia, quando
esta denunciar a corrupção e a gestão ineficiente de seus amigos políticos e
empresários. Preencha os vazios sanitários, com este exército, sem consultar ou
respeitar a opinião das entidades de classe, defensora dos direitos da
categoria, e da formação médica com qualidade.
Aproveite o momento de lua de mel das
associações de defesa dos interesses médicos e de formação com suas vaidades e
disputas internas, com a razão técnica, com o gozo tecnoburocrático, teórico
acadêmico, e ponha o produto no mercado, envolto em papel prateado decorado com
corações vermelhos.
E não se esqueça de que todo discurso
contrário ao seu é ideológico, ultrapassado, portanto não é racional, e não
serve para você e o sistema. Nenhuma outra receita serve, pois o que interessa
para você é que saúde é ausência de doença, e presença de médicos.
Bom apetite, companheiros!