quinta-feira, 17 de maio de 2012

A HUMANIZAÇÃO DA MEDICINA



A centopeia encontrou-se, um dia, com um gafanhoto que lhe disse: " Da. Centopéia, a senhora é um assombro, tantas pernas, todas andando ao mesmo tempo, nunca tropeçam, nunca se embaralham... Da. Centopéia, por favor me diga: quando a senhora vai andar, qual é a primeira perna que a senhora mexe?" A Centopeia se assustou. Nunca havia pensado nisso. Sempre andara sem precisar pensar. "Não sei, senhor Gafanhoto. Mas prometo: da próxima vez que eu andar, prestarei atenção." Termina a estória dizendo que desde esse dia a Centopéia ficou paralítica...  
Durante um dos estimulantes congressos brasileiros de educação médica um professor de conceituada e inovadora escola médica, com muitos anos de docência, sincero em sua angústia de ser cobrado a ser humano, ou mais humano, afirmou sentir-se incompleto para esta função. Percebendo a incompletude da formação médica atual para o desenvolvimento de atitudes humanitárias sugeriu para os novos alunos e para os já veteranos colegas cinco referências literárias, dentre as quais as cinco lições de psicanálise de Sigmund Freud. Todas as referências, em especial as cinco lições de psicanálise, muito caras à minha formação psicanalítica, admito dever ser de leitura obrigatória a qualquer profissional da área da saúde ou da educação. A legitimidade de sua angústia e das sugestões literárias não impede, no entanto, que observemos nossas atitudes com o distanciamento e a neutralidade possível para contextualizá-las adequadamente. Senti uma ternura profunda por aquele senhor grisalho e miúdo, que se misturava ao muito respeito que aprendi a ter para com os mais velhos e os professores. Ouvi-o com muita atenção, sem interrompê-lo. Más, no distanciamento necessário propiciado pela reflexão posterior e solitária percebo como refletimos em nossas atitudes as informações que teceram a nossa própria formação, situando-nos como parte de um todo que não vislumbramos com a necessária distinção.
Preocupado com o professor sem a formação adequada para o ofício pedagógico e que agora é cobrado a compreender-se humano para humanizar alunos, com seus reflexos, aquele senhor dotado da mais sincera e legítima intenção acredita que é possível mudar alguém com leituras especializadas e dotadas de saber humanizante.
A racionalidade aparentemente ingênua na voz daquele senhor despertou-me, além da ternura, maior respeito aos livros e seus autores que escrevem com a intenção de ensinar a aproximar, acolher, respeitar, ter compaixão e amar o próximo. Nunca se escreveu e se falou tanto sobre o tema humanismo como nos dias atuais. Talvez a motivação seja, de fato, a ausência ou a distorção de valores humanistas na atualidade, ou para alguns reflita apenas a nostalgia de papéis e valores mais definidos que os de hoje.
Estando ou não vivenciando uma época de transição em que se misturam valores modernistas aos hipermodernistas ou pós-modernistas, também é certo que no quesito dos valores humanitários, o mundo vai de mal a pior. E as relações profissionais no exercício da docência em saúde, não apenas em medicina, não são diferentes das relações profissionais no trabalho em saúde, ou no trabalho ou na docência em qualquer categoria profissional ou nível social.
A excessiva psicologização da educação simultânea à despolitização impedia ao experiente professor a compreensão de que à medida que nos constituímos como pessoa, sujeito, desde a infância, é pelo exemplo e pela imitação, pela observação do exercício diário dos valores de uma moral coletiva por familiares, professores, e autoridades em geral que constituímos uma ética pessoal diferenciadora, humanizante ou não. E que o professor perfeito, educado apenas pela técnica psicopedagógica é desumanizador. A admissão de sua insuficiência é um requisito básico e necessário para que o discípulo não se constitua pela ilusão da onipotência.
Cresci ouvindo que se conselho fosse bom não seria dado e sim vendido. Estamos na era dos conselhos vendidos, em que a literatura e programas de auto-ajuda prometem a felicidade pelo preço módico de um livro, uma conferência, ou um fim de semana em um spá. Nem por isso, estamos mais felizes!
A visão da educação como tecnologia apenas, nos transforma em funcionários e prescritores de regras as quais desconhecemos a origem e motivação política.
Melhor seria esquecer as leituras técnicas humanizantes, solitárias, e exercer a arte dos encontros, com os abraços e os olhares pousados com ternura sobre o outro, com as palavras doces e sinceras, os cumprimentos afáveis, e as delicadezas que tecem os dias tranquilos e felizes.
As leituras, que sejam poesias, bons romances, as pausas necessárias aos pensamentos racionais e utilitários, e á dureza dos momentos em que lidamos com as dores e os limites.
Neste momento, em que nos mobilizamos para revisar o PPG do curso de medicina, precisamos refletir sobre as possibilidades atuais de equilíbrio entre técnica e política, razão e emoção, para recriar caminhos sem os atalhos do conformismo, sem os exageros do tecnicismo, sem o reducionismo psicologizante.