Começarei
meu discurso como uma retribuição à homenagem de vocês feita aos mestres,
agradecendo mais uma vez a todos o
privilégio e a graça de ter convivido estes seis últimos anos em harmonia e
clima de amizade e respeito. “Hoje, sabemos que nossos melhores mestres não
foram os que ensinaram as respostas, mas, sim aqueles que nos ensinaram a
questionar, a duvidar, a pensar e a sonhar”. Estas são as palavras de homenagem
aos mestres, impressas no convite de formatura. Belas e dignas palavras de
reconhecimento do trabalho de uma equipe, que com todas as dificuldades e
diferenças, desde o inicio da reforma curricular vem aperfeiçoando a arte de
educar com qualidade e afeto. Portanto, muito obrigado pelas palavras e pelos
gestos carinhosos de despedida trocados desde o inicio desta semana.
O
que é educar senão acolher e propiciar o máximo possível o desenvolvimento
potencial de um individuo ou de um grupo para a responsabilidade pessoal, familiar,
comunitária e social, para que encontrem o caminho do cuidado de si e da ação
solidária, da construção da paz e da tolerância; para que contribuam para a
justiça social participando como agentes ativos nas desigualdades regionais;
para o compromisso com a ética nos mínimos atos cotidianos e com a verdade nas
relações para que as crianças testemunhem e confiem no processo civilizatório
mediado pelos cuidados dos adultos; e para que possam criar, complementar,
modificar ou refazer, o que não tivemos ainda coragem, força, ética ou
conhecimento suficientes.
Falo
de educar para os sonhos, projetos, ideais comuns que podem transformar e
deixar marcas civilizatórias, que nos confiram autonomia como indivíduos e como
nação. Falo da reconstrução do laço social desfeito nas grandes cidades, em que
são mais visíveis os muros, as câmeras de vigilância e cercas eletrificadas que
os espaços de convivência, para que se restabeleça a confiança e os gestos de
amizade e carinho, e os sorrisos espontâneos possam novamente prevalecer.
Falo
de educar para além da técnica e dos conteúdos programáticos agora reduzidos a
protocolos e diretrizes até para o que se pretende como humanização.
Falo
de um projeto de educar para a cidadania responsável, para a vivência comunitária
como possibilidade de escapar à pressão da financeirização da vida cotidiana em
que nossos olhos somente brilham nos shoppings ou com lentes artificiais, e
nossos sorrisos são postos na face pelo último antidepressivo no mercado ou
congelados pelas injeções de botox.
Como
Sísifo, estaremos a tentar, sem trégua, responder aos desafios impostos pelas
contradições dos arranjos de poderes sociais, locais e globalizados, legítimos
e amorais, técnico-cientificos e ideologicamente comprometidos, produtivistas e
exclusivistas, com a educação que considere as diferenças na origem de cada um,
mas faça duvidar, questionar, ousar e sonhar com um mundo melhor como vocês
sugerem como características docentes ideais.
Vivenciamos
ainda um tempo histórico e social imóvel, muito semelhante aquele quando a
elite da corte portuguesa desembarcou no Brasil fugindo das tropas de Napoleão.
O fosso da desigualdade social permanece profundo, as elites vorazes continuam
roubando impunemente, e a aparência de opulência da nação, hoje rica e
faustosa, ostentando o sexto maior PIB do mundo, preenche um imaginário secular
de “pais do futuro”. Muito rica a nação e muito pobre a maioria da população, nossa
elite ainda parece aquela que desembarcou com roupas suntuosas e lenços na
cabeça para esconder os piolhos, e leques para esconder os sorrisos enegrecidos
pelas cáries. Hoje, esta elite expande seus interesses sobre a saúde
apropriando-se não dos bens materiais públicos, que permanecem públicos, mas em
um acordo perverso em que mantendo a posse destes bens, permitimos a evasão de
uma das fatias mais gordas do erário para a iniciativa privada: a verba
relativa a gestão de 51 hospitais universitários federais.
Como
médicos e educadores temos que dar conta dos efeitos inevitáveis de uma
organização política e social perversa que só enxerga indicadores econômicos e
de consumo de bens/coisas. Chico Cesar filosofa cantando “coisas tem um brilho
no começo/más se viro pelo avesso/são fardos prá carregar”.
Esta
forma de viver tem ampliado os medos à dimensão da paralisia cívica ou da
anestesia moral social. Vivemos uma crise ética sem precedentes. Freud afirma
em “O mal estar na civilização” que três medos nos impedem viver sem
sofrimento: as forças da natureza, o desgaste natural do corpo, e as relações
sociais. Para Hobbes, na natureza humana, três motivações levam a disputas e ao
isolamento social: competição, desconfiança e glória. O mundo unidirecionado
pelo capital em sua forma mais atual, neoliberal, encontra em países
periféricos como o Brasil, espaço para espoliar não apenas as reservas
naturais, mas também fragilizar as instituições, e ainda assim administrar a
desconfiança generalizada com tranquilizantes, câmeras de vigilância,
condomínios isolados, segurança armada, e claro, promessas, muitas promessas.
Talvez, por isso, sejamos o país do futuro, porque aguardamos eternamente pelo
fruto prometido. O Estado autocrático em que vivemos, a democracia para os
ricos, não permite mais a confiança, más permite que se administre seus efeitos
ilusórios, de completa liberdade, acompanhada de insegurança, desconfiança
e medo.
A
resposta do governo aos anseios da onda popular, jovem, que nas ruas abalou os
alicerces da coalizão política de apoio, com a criação do programa mais
médicos, serve bem à reflexão sobre os propósitos do capital: em menos de dois
anos, mais de treze mil médicos prescrevendo antibióticos, tranquilizantes, e
outros medicamentos, farão a felicidade da industria farmacêutica, enquanto
satisfazemos a compulsão de consumo, alimentamos o comportamento aditivo, ainda
que de consultas e drogas legais. No entanto, caridade somente não justifica
nem resolve problemas estruturais sociais profundos que reclamam reformas
urgentes. Más, é preciso girar a roda da
fortuna, para que a atenção primária, brevemente esteja sendo administrada
também por empresas públicas de direito privado. A PEC, para este fim, já foi
aprovada, em novembro passado.
Despeço-me
de vocês, com uma tentativa última de compensação para esclarecer com uma
síntese impossível, os desafios contemporâneos impostos para o exercício da
medicina, premido pelo tempo e pelas circunstâncias, e com a certeza de que
nunca saberemos tudo, que é impossível apreender a realidade, que a
interpretamos com os recursos possíveis na classe social em que nos situamos.
Procuro mostrar a realidade e seus desafios, desvelar as verdadeiras intenções
das boas ações no mundo capitalizado, para que entendam que é na história, nas
ações coletivas, no contrato social regido pela razão, que as soluções de paz
serão estabelecidas.
Más,
retorno às palavras de vocês citadas no inicio, “questionar, duvidar, ousar,
sonhar” para que nos despeçamos com a ternura exigida para os momentos
difíceis, a marca deixada pelo mais lembrado dos médicos pelos jovens, o
revolucionário argentino Che Guevara. Para que vocês se lembrem nos momentos
mais duros da lida profissional, que o sofrimento alheio tem nome, cor, origem
social, história; que vocês também tem limites físicos; que vocês tem na
memória afetiva profissional, identificações ou exemplos para lembrar e
espelhar no futuro para as novas gerações, pois a ética humanitária social
ainda prevalece e tem na família e na escola a guarda do fogo sagrado do
conhecimento responsável, cidadão.
Qualquer
que seja o caminho que o desejo os leve a percorrer, e a personalidade que
expressem na maturidade, será nos traços identificatórios positivos, nos
exemplos éticos, que vocês encontrarão a solução para equilibrar a
racionalidade fria da ciência e a amorosidade acolhedora aprendida com o
exercício da fé, e dos afetos familiares, dos amigos, e dos educadores. É nesse
intervalo, entre o acionamento da razão e do afeto, em um cantinho da memória
afetiva de cada um que desejo estar para ser lembrado, quando diante dos desafios
diagnósticos e terapêuticos, como acontecia nas reuniões tutoriais: você sabe
alguma coisa, complemente pesquisando, discuta com os colegas de plantão,
ninguém sabe tudo sozinho, raciocine, associe, e então descobrirá a reposta.
Ela está em você, em vocês.
Desejo
que vocês saibam conquistar a felicidade que cada um, a categoria, e a
humanidade merece.
Finalizo,
agradecendo a vocês e a seus familiares a confiança e o convívio que nos
proporcionaram, como docentes, prazer e desenvolvimento profissional.
Muito
obrigado, sucesso e felicidade para todos.