terça-feira, 28 de janeiro de 2014

MENSAGEM PARA A TURMA DE FORMANDOS 2013.2


Começarei meu discurso como uma retribuição à homenagem de vocês feita aos mestres, agradecendo mais uma vez a  todos o privilégio e a graça de ter convivido estes seis últimos anos em harmonia e clima de amizade e respeito. “Hoje, sabemos que nossos melhores mestres não foram os que ensinaram as respostas, mas, sim aqueles que nos ensinaram a questionar, a duvidar, a pensar e a sonhar”. Estas são as palavras de homenagem aos mestres, impressas no convite de formatura. Belas e dignas palavras de reconhecimento do trabalho de uma equipe, que com todas as dificuldades e diferenças, desde o inicio da reforma curricular vem aperfeiçoando a arte de educar com qualidade e afeto. Portanto, muito obrigado pelas palavras e pelos gestos carinhosos de despedida trocados desde o inicio desta semana.
O que é educar senão acolher e propiciar o máximo possível o desenvolvimento potencial de um individuo ou de um grupo para a responsabilidade pessoal, familiar, comunitária e social, para que encontrem o caminho do cuidado de si e da ação solidária, da construção da paz e da tolerância; para que contribuam para a justiça social participando como agentes ativos nas desigualdades regionais; para o compromisso com a ética nos mínimos atos cotidianos e com a verdade nas relações para que as crianças testemunhem e confiem no processo civilizatório mediado pelos cuidados dos adultos; e para que possam criar, complementar, modificar ou refazer, o que não tivemos ainda coragem, força, ética ou conhecimento suficientes. 
Falo de educar para os sonhos, projetos, ideais comuns que podem transformar e deixar marcas civilizatórias, que nos confiram autonomia como indivíduos e como nação. Falo da reconstrução do laço social desfeito nas grandes cidades, em que são mais visíveis os muros, as câmeras de vigilância e cercas eletrificadas que os espaços de convivência, para que se restabeleça a confiança e os gestos de amizade e carinho, e os sorrisos espontâneos possam novamente prevalecer.
Falo de educar para além da técnica e dos conteúdos programáticos agora reduzidos a protocolos e diretrizes até para o que se pretende como humanização.
Falo de um projeto de educar para a cidadania responsável, para a vivência comunitária como possibilidade de escapar à pressão da financeirização da vida cotidiana em que nossos olhos somente brilham nos shoppings ou com lentes artificiais, e nossos sorrisos são postos na face pelo último antidepressivo no mercado ou congelados pelas injeções de botox.
Como Sísifo, estaremos a tentar, sem trégua, responder aos desafios impostos pelas contradições dos arranjos de poderes sociais, locais e globalizados, legítimos e amorais, técnico-cientificos e ideologicamente comprometidos, produtivistas e exclusivistas, com a educação que considere as diferenças na origem de cada um, mas faça duvidar, questionar, ousar e sonhar com um mundo melhor como vocês sugerem como características docentes ideais.
Vivenciamos ainda um tempo histórico e social imóvel, muito semelhante aquele quando a elite da corte portuguesa desembarcou no Brasil fugindo das tropas de Napoleão. O fosso da desigualdade social permanece profundo, as elites vorazes continuam roubando impunemente, e a aparência de opulência da nação, hoje rica e faustosa, ostentando o sexto maior PIB do mundo, preenche um imaginário secular de “pais do futuro”. Muito rica a nação e muito pobre a maioria da população, nossa elite ainda parece aquela que desembarcou com roupas suntuosas e lenços na cabeça para esconder os piolhos, e leques para esconder os sorrisos enegrecidos pelas cáries. Hoje, esta elite expande seus interesses sobre a saúde apropriando-se não dos bens materiais públicos, que permanecem públicos, mas em um acordo perverso em que mantendo a posse destes bens, permitimos a evasão de uma das fatias mais gordas do erário para a iniciativa privada: a verba relativa a gestão de 51 hospitais universitários federais.
Como médicos e educadores temos que dar conta dos efeitos inevitáveis de uma organização política e social perversa que só enxerga indicadores econômicos e de consumo de bens/coisas. Chico Cesar filosofa cantando “coisas tem um brilho no começo/más se viro pelo avesso/são fardos prá carregar”.
Esta forma de viver tem ampliado os medos à dimensão da paralisia cívica ou da anestesia moral social. Vivemos uma crise ética sem precedentes. Freud afirma em “O mal estar na civilização” que três medos nos impedem viver sem sofrimento: as forças da natureza, o desgaste natural do corpo, e as relações sociais. Para Hobbes, na natureza humana, três motivações levam a disputas e ao isolamento social: competição, desconfiança e glória. O mundo unidirecionado pelo capital em sua forma mais atual, neoliberal, encontra em países periféricos como o Brasil, espaço para espoliar não apenas as reservas naturais, mas também fragilizar as instituições, e ainda assim administrar a desconfiança generalizada com tranquilizantes, câmeras de vigilância, condomínios isolados, segurança armada, e claro, promessas, muitas promessas. Talvez, por isso, sejamos o país do futuro, porque aguardamos eternamente pelo fruto prometido. O Estado autocrático em que vivemos, a democracia para os ricos, não permite mais a confiança, más permite que se administre seus efeitos ilusórios, de completa liberdade, acompanhada de insegurança, desconfiança e medo.
A resposta do governo aos anseios da onda popular, jovem, que nas ruas abalou os alicerces da coalizão política de apoio, com a criação do programa mais médicos, serve bem à reflexão sobre os propósitos do capital: em menos de dois anos, mais de treze mil médicos prescrevendo antibióticos, tranquilizantes, e outros medicamentos, farão a felicidade da industria farmacêutica, enquanto satisfazemos a compulsão de consumo, alimentamos o comportamento aditivo, ainda que de consultas e drogas legais. No entanto, caridade somente não justifica nem resolve problemas estruturais sociais profundos que reclamam reformas urgentes.  Más, é preciso girar a roda da fortuna, para que a atenção primária, brevemente esteja sendo administrada também por empresas públicas de direito privado. A PEC, para este fim, já foi aprovada, em novembro passado.
Despeço-me de vocês, com uma tentativa última de compensação para esclarecer com uma síntese impossível, os desafios contemporâneos impostos para o exercício da medicina, premido pelo tempo e pelas circunstâncias, e com a certeza de que nunca saberemos tudo, que é impossível apreender a realidade, que a interpretamos com os recursos possíveis na classe social em que nos situamos. Procuro mostrar a realidade e seus desafios, desvelar as verdadeiras intenções das boas ações no mundo capitalizado, para que entendam que é na história, nas ações coletivas, no contrato social regido pela razão, que as soluções de paz serão estabelecidas.
Más, retorno às palavras de vocês citadas no inicio, “questionar, duvidar, ousar, sonhar” para que nos despeçamos com a ternura exigida para os momentos difíceis, a marca deixada pelo mais lembrado dos médicos pelos jovens, o revolucionário argentino Che Guevara. Para que vocês se lembrem nos momentos mais duros da lida profissional, que o sofrimento alheio tem nome, cor, origem social, história; que vocês também tem limites físicos; que vocês tem na memória afetiva profissional, identificações ou exemplos para lembrar e espelhar no futuro para as novas gerações, pois a ética humanitária social ainda prevalece e tem na família e na escola a guarda do fogo sagrado do conhecimento responsável, cidadão.
Qualquer que seja o caminho que o desejo os leve a percorrer, e a personalidade que expressem na maturidade, será nos traços identificatórios positivos, nos exemplos éticos, que vocês encontrarão a solução para equilibrar a racionalidade fria da ciência e a amorosidade acolhedora aprendida com o exercício da fé, e dos afetos familiares, dos amigos, e dos educadores. É nesse intervalo, entre o acionamento da razão e do afeto, em um cantinho da memória afetiva de cada um que desejo estar para ser lembrado, quando diante dos desafios diagnósticos e terapêuticos, como acontecia nas reuniões tutoriais: você sabe alguma coisa, complemente pesquisando, discuta com os colegas de plantão, ninguém sabe tudo sozinho, raciocine, associe, e então descobrirá a reposta. Ela está em você, em vocês. 
Desejo que vocês saibam conquistar a felicidade que cada um, a categoria, e a humanidade merece.
Finalizo, agradecendo a vocês e a seus familiares a confiança e o convívio que nos proporcionaram, como docentes, prazer e desenvolvimento profissional.

Muito obrigado, sucesso e felicidade para todos.

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