sexta-feira, 27 de maio de 2016

MENSAGEM AOS FORMANDOS DA TURMA LXVI DA FAMED-UFAL


Meus queridos formandos da LXVI turma de medicina da UFAL
Ontem associei à lembrança no futuro, da turma de vocês, ao ano em que reiniciamos a recuperação do HU como espaço privilegiado de ensino. Hoje, associo a outras situações não menos importantes: 2016 será lembrado como o ano em que o Brasil enfrentou a pior crise moral, politica, e econômica após a redemocratização; o ano em que nossa querida coordenadora, a professora Yasmin finalizou o seu mandato, deixando também um legado importante de dedicação à gestão da formação médica; o ano em que iniciou a primeira turma do curso de medicina de Arapiraca.
Hoje, estamos reunidos para celebrar o dia mais especial da juventude de vocês, e que abre novas portas para tantos outros momentos especiais.
Para alguns, com identificação plena com a medicina, o sonho foi colorido, como um vôo fácil e prazeroso; para outros, um desafio permanente, a identificação foi sendo construída, devagar, com a superação, muitas vezes dolorida, de obstáculos.
Más, o sonho foi cumprido, e estamos aqui para celebrar com vocês, a primeira autorização para a prática profissional e cidadã, que deverá ser ainda referendada pelo conselho profissional.
Para chegar a esse dia, e continuar sonhando, muitas vidas se entrecruzaram, e muitas histórias foram entretecidas pelo conhecido e familiar, mas também pelo inesperado, o desconhecido, o invulgar.
O poeta mineiro, Murilo Mendes, disse em um de seus certeiros poemas: Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos. E a ele peço licença para poetizar com as circunstâncias e personagens que nos ajudam, familiares ou incógnitos, a construir a escada para os nossos sonhos, e nossas vidas.
Somos feitos do entrecruzamento dos fios dos desejos de quem nos é familiar, e pelo desconhecido, que preferimos chamar de destino.
Pensem em quantas pessoas, em diferentes circunstâncias, foram necessárias para a construção de cada degrau da escada, até chegar aqui:
Quem preparou o café da manhã, e aguardou paciente o retorno no fim do dia com a mesa posta;
Quem vos despertou com um bom dia suave, um beijo na face, às vezes cantando, e deixou a roupa pronta para uso e no fim do dia recolheu tudo novamente;
Quem aplaudiu cada vitória, e apoiou quando tudo parecia contrário;
Quem espelhou atitudes, quem indicou atalhos, corrigiu o percurso;
Quem entendeu vossos desejos, e quando necessário soube dizer não;
Quem observou o crescimento das asas, e agora assiste ao vôo autônomo;
Quem compartilhou bons momentos, ou aconselhou nas horas difíceis;
Quem incentivou em silêncio e colaborou nos bastidores para que a entrada em cena, hoje, fosse especial;
Quem foi o último companheiro capaz de apaziguar as angústias quando ninguém mais, dotado de razão conseguiu, e se aconchegou no colo latindo ou ronronando felicidades que a ciência não decifra nem compreende;
Todos esses, familiares, vizinhos, amigos, amores, e as dádivas da natureza, compuseram o teatro possível para a escalada firme e suave;
Estenderam a mão, acolheram com o abraço mais afetuoso, beijaram transmitindo confiança, dançaram todos juntos, em compassos diferentes, a ciranda que ensinou os códigos e os laços de familiaridade; ensinaram o valor da amizade, da confiança, da cooperação, da comunhão de afetos, sem valor de moeda.
Afinal, ninguém aprende a andar sozinho, e ninguém sobrevive só.
Os fios e nós que compõem a malha das relações que conta a história de nossas vidas são incontáveis e complexos, alguns invisíveis aos olhos acostumados com o familiar.
Contar os dilemas, narrar os sofrimentos, pintar as angústias, arquivar os temores, expor os gozos, fotografar os personagens de um único dia do HGE se traduziria em perplexidade e assombro, que preferimos nos distanciar;
Quantos pela competição desleal, pelos privilégios, pela trapaça, no país da desigualdade social, foram forçados a abdicar do sonho de ser médico;
Esses compõem os vazios, anônimos, desconhecidos e assustadores, da malha de nossas histórias.
Quantos outros desconhecidos ao longo dos seis anos de formação abriram o livro da vida para que pudessemos entender os limites da escalada;
Quantas historias foram ouvidas, quantos sintomas decifrados, quantos enigmas em cada pessoa, em cada vida, retornadas à distância do anonimato após a alta;
E ficamos sem entender certas nostalgias, certas saudades, sem nomes, que perturbam nosso noturno espírito racional;
Quantos sem as mesmas oportunidades de uma vida saudável depositaram em nossas mãos a esperança de continuar seus próprios e limitados sonhos, por mais um tempo, precioso, por menor que fosse;
Nosso caminho está marcado pela ética da solidariedade profissional para com os que, fragilizados pelo sofrimento, duvidam da esperança de poder continuar seus próprios sonhos.
Ninguém se torna médico só, nem deve alimentar a ilusão da onipotência profissional;
Queremos ser bons, e ter nossa ação reconhecida como mérito pessoal,
Más, com a licença poética de Brecht digo que:
Em vez de sermos apenas bons,
Esforcemo-nos para criar um estado de coisas
Que torne possível a bondade
Ou melhor: que a torne supérflua.
Devemos compreender que nossa vida também participa dos fios das malhas de outras vidas, e podemos contribuir para transformar o trabalho em saúde, e o pequeno mundo egoísta ao nosso redor com ações de cooperação, solidariedade e respeito à integridade física e psíquica, individual e coletiva, considerando a dignidade humana como referencial para a garantia de direitos.
Por isso, e para isso, é saudável partir, criar novos laços, e ampliar a compreensão do mundo, em outros contextos,
Para ser adulto, artífice de vossos próprios desejos, será preciso ousar e continuar a escalada sozinho, longe do conforto do familiar e conhecido, e aventurar-se à experimentação do mundo e da ciência, incorporando e tornando familiar cada novo encontro, cada deslumbramento com o conhecimento.
O que vamos tornando familiar nos é possível aplicar como bondade solidária, e isso nos liberta do destino para a escalada em busca de novo conhecimento.
Pais, familiares, amigos, criamos juntos poemas cheios de humanidade
Resta-nos dizer adeus, com mais  uma licença poética, dessa vez a Fernando Pessoa:

Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide, de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

Formandos da XLVIII turma da FAMED/UFAL, é hora de partir.
Boa sorte em suas futuras escolhas.






SOBRE O SIGNIFICADO DA PLACA DE FORMATURA



Qual o significado desse momento especial, que implica na aposição de uma placa comemorativa?
Há algo de ancestral, de mitológico, de identificação com imagens e vozes que ecoam e se multiplicam há mais de dois mil anos, representando e contando a mesma história: a da formação para o cuidado de um ser humano pelo outro.
A medicina ocidental começa com o registro de um documento indicativo da regulação ética da prática, apresentado por Hipócrates. Más, em outras culturas começa muito antes, e na história da humanidade começa com o ato de cuidar quando, talvez, alguém ajudou pela primeira vez no nascimento de uma criança, um ancião foi protegido de ser devorado, um emplastro de folhas foi aplicado sobre um ferimento, talvez uma simples topada.
Em cada uma dessas ações a humanidade se desenvolvia, cada ação era um passo civilizatório acumulado, equivalente a milhares de anos. E tudo era registrado na pedra, para depois ser contado e recontado. Era criado então o mito, e o herói.
Hoje, continuamos registrando na pedra, nossos feitos, em momentos simbólicos, em rituais coletivos de passagem.
No último ano do curso os estudantes estão mais adultos, e com o registro na pedra afirmam: passamos aqui, como outros vem fazendo há milhares de anos; lembrem-se de nós, como fomos, jovens, belos, sonhadores, audaciosos, amorosos, fraternos. Somos a promessa!
Com todos esses outros registros, em sequência, damos o testemunho do nosso compromisso com a formação em saúde para um trabalho futuro com a qualidade que corresponde ao nosso sonho iniciado seis anos atrás.
E nós, professores, também, repetimos como os ancestrais, consagrando o registro dos estudantes, na pedra, e permanecemos aqui contando aos futuros aspirantes a médicos, sempre sonhadores , sobre as qualidades de cada um que já partiu para a autonomia profissional.
Esse registro guarda, principalmente, o brilho da juventude e do sonho de cada um.
E é assim que sempre nos lembraremos, da força por trás do brilho que os move para cuidar dos outros.