Meus
queridos formandos da LXVI turma de medicina da UFAL
Ontem
associei à lembrança no futuro, da turma de vocês, ao ano em que reiniciamos a
recuperação do HU como espaço privilegiado de ensino. Hoje, associo a outras
situações não menos importantes: 2016 será lembrado como o ano em que o Brasil
enfrentou a pior crise moral, politica, e econômica após a redemocratização; o
ano em que nossa querida coordenadora, a professora Yasmin finalizou o seu
mandato, deixando também um legado importante de dedicação à gestão da formação médica; o
ano em que iniciou a primeira turma do curso de medicina de Arapiraca.
Hoje, estamos
reunidos para celebrar o dia mais especial da juventude de vocês, e que abre
novas portas para tantos outros momentos especiais.
Para alguns,
com identificação plena com a medicina, o sonho foi colorido, como um vôo fácil
e prazeroso; para outros, um desafio permanente, a identificação foi sendo
construída, devagar, com a superação, muitas vezes dolorida, de obstáculos.
Más, o sonho
foi cumprido, e estamos aqui para celebrar com vocês, a primeira autorização
para a prática profissional e cidadã, que deverá ser ainda referendada pelo
conselho profissional.
Para chegar
a esse dia, e continuar sonhando, muitas vidas se entrecruzaram, e muitas
histórias foram entretecidas pelo conhecido e familiar, mas também pelo
inesperado, o desconhecido, o invulgar.
O poeta
mineiro, Murilo Mendes, disse em um de seus certeiros poemas: Alguém anda a
construir uma escada pros meus sonhos. E a ele peço licença para poetizar com
as circunstâncias e personagens que nos ajudam, familiares ou incógnitos, a
construir a escada para os nossos sonhos, e nossas vidas.
Somos feitos
do entrecruzamento dos fios dos desejos de quem nos é familiar, e pelo
desconhecido, que preferimos chamar de destino.
Pensem em
quantas pessoas, em diferentes circunstâncias, foram necessárias para a
construção de cada degrau da escada, até chegar aqui:
Quem
preparou o café da manhã, e aguardou paciente o retorno no fim do dia com a
mesa posta;
Quem vos
despertou com um bom dia suave, um beijo na face, às vezes cantando, e deixou a
roupa pronta para uso e no fim do dia recolheu tudo novamente;
Quem
aplaudiu cada vitória, e apoiou quando tudo parecia contrário;
Quem
espelhou atitudes, quem indicou atalhos, corrigiu o percurso;
Quem
entendeu vossos desejos, e quando necessário soube dizer não;
Quem
observou o crescimento das asas, e agora assiste ao vôo autônomo;
Quem
compartilhou bons momentos, ou aconselhou nas horas difíceis;
Quem
incentivou em silêncio e colaborou nos bastidores para que a entrada em cena, hoje, fosse especial;
Quem foi o
último companheiro capaz de apaziguar as angústias quando ninguém mais, dotado
de razão conseguiu, e se aconchegou no colo latindo ou ronronando felicidades
que a ciência não decifra nem compreende;
Todos esses,
familiares, vizinhos, amigos, amores, e as dádivas da natureza, compuseram o
teatro possível para a escalada firme e suave;
Estenderam a
mão, acolheram com o abraço mais afetuoso, beijaram transmitindo confiança,
dançaram todos juntos, em compassos diferentes, a ciranda que ensinou os
códigos e os laços de familiaridade; ensinaram o valor da amizade, da
confiança, da cooperação, da comunhão de afetos, sem valor de moeda.
Afinal,
ninguém aprende a andar sozinho, e ninguém sobrevive só.
Os fios e
nós que compõem a malha das relações que conta a história de nossas vidas são
incontáveis e complexos, alguns invisíveis aos olhos acostumados com o
familiar.
Contar os
dilemas, narrar os sofrimentos, pintar as angústias, arquivar os temores, expor
os gozos, fotografar os personagens de um único dia do HGE se traduziria em
perplexidade e assombro, que preferimos nos distanciar;
Quantos pela
competição desleal, pelos privilégios, pela trapaça, no país da desigualdade social,
foram forçados a abdicar do sonho de ser médico;
Esses
compõem os vazios, anônimos, desconhecidos e assustadores, da malha de nossas
histórias.
Quantos
outros desconhecidos ao longo dos seis anos de formação abriram o livro da vida
para que pudessemos entender os limites da escalada;
Quantas
historias foram ouvidas, quantos sintomas decifrados, quantos enigmas em cada
pessoa, em cada vida, retornadas à distância do anonimato após a alta;
E ficamos
sem entender certas nostalgias, certas saudades, sem nomes, que perturbam nosso
noturno espírito racional;
Quantos sem
as mesmas oportunidades de uma vida saudável depositaram em nossas mãos a
esperança de continuar seus próprios e limitados sonhos, por mais um tempo,
precioso, por menor que fosse;
Nosso
caminho está marcado pela ética da solidariedade profissional para com os que,
fragilizados pelo sofrimento, duvidam da esperança de poder continuar seus
próprios sonhos.
Ninguém se
torna médico só, nem deve alimentar a ilusão da onipotência profissional;
Queremos ser
bons, e ter nossa ação reconhecida como mérito pessoal,
Más, com a
licença poética de Brecht digo que:
Em vez de
sermos apenas bons,
Esforcemo-nos
para criar um estado de coisas
Que torne
possível a bondade
Ou melhor:
que a torne supérflua.
Devemos
compreender que nossa vida também participa dos fios das malhas de outras
vidas, e podemos contribuir para transformar o trabalho em saúde, e o pequeno
mundo egoísta ao nosso redor com ações de cooperação, solidariedade e respeito
à integridade física e psíquica, individual e coletiva, considerando a dignidade
humana como referencial para a garantia de direitos.
Por isso, e
para isso, é saudável partir, criar novos laços, e ampliar a compreensão do
mundo, em outros contextos,
Para ser
adulto, artífice de vossos próprios desejos, será preciso ousar e continuar a escalada
sozinho, longe do conforto do familiar e conhecido, e aventurar-se à
experimentação do mundo e da ciência, incorporando e tornando familiar cada
novo encontro, cada deslumbramento com o conhecimento.
O que vamos
tornando familiar nos é possível aplicar como bondade solidária, e isso nos
liberta do destino para a escalada em busca de novo conhecimento.
Pais,
familiares, amigos, criamos juntos poemas cheios de humanidade
Resta-nos
dizer adeus, com mais uma licença
poética, dessa vez a Fernando Pessoa:
Da mais alta
janela da minha casa
Com um lenço
branco digo adeus
Aos meus
versos que partem para a humanidade
E não estou
alegre nem triste.
Esse é o
destino dos versos.
Escrevi-os e
devo mostrá-los a todos
Porque não
posso fazer o contrário
Como a flor
não pode esconder a cor,
Nem o rio
esconder que corre,
Nem a árvore
esconder que dá fruto.
Ei-los que
vão já longe como que na diligência
E eu sem
querer sinto pena
Como uma dor
no corpo.
Quem sabe
quem os lerá?
Quem sabe a
que mãos irão?
Flor, colheu-me
o meu destino para os olhos.
Árvore,
arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o
destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e
sinto-me quase alegre,
Quase alegre
como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide, de
mim!
Passa a
árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a
flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio
e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e
fico, como o Universo.
Formandos da
XLVIII turma da FAMED/UFAL, é hora de partir.
Boa sorte em
suas futuras escolhas.
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