terça-feira, 7 de julho de 2015

DISCURSO AOS FORMANDOS DE MEDICINA DA UFAL - TURMA 2015.1


É com imenso prazer que vos falo nesta cerimônia de colação de grau para homenagear a nova turma de bacharéis em medicina. Como diretor da unidade, porto o símbolo da responsabilidade, o dever do zelo ético, pelo cuidado compartilhado para com o ensino técnico e o humanizado, e o bem estar de todos que compõem a Faculdade de medicina da UFAL. E em nome de todos os demais docentes e técnicos da FAMED, presentes e ausentes, com o calor das palavras e das emoções, saudamos os formandos e mantemos vivo, nesta cerimônia, o fogo do conhecimento mais antigo sobre o cuidado ético da saúde humana. Vivo desde que alguém precisou do cuidado de outro e este cuidado foi repetido até transformar-se em técnica, em conhecimento, sendo repassado por gerações de escravos, curandeiros, pitonisas, bruxas, cirurgiões-barbeiros, pajés, charlatães, até transformar-se no que conhecemos como a medicina biotecnológica de hoje. Conhecimento vivo, de investigação e transmissão oral no inicio, artesanal na idade média, empírica desde Descartes, e por fim, em nossos dias, tecnológico-digital. Nesta sumaríssima história da medicina e do ensino médico podemos admitir que a medicina nunca foi uma só, o ensino médico modificou-se com os avanços sociais e educacionais, e a ética para a formação e para o exercício da medicina também teve que se adaptar aos desafios impostos por estas transformações. De uma relação monárquica com os pacientes em que a palavra do médico era soberana, podendo, no entanto, ser punido por seus erros mais grosseiros, vigente desde Hipócrates até meados do século XX, a medicina passou a dialogar com os demais profissionais da saúde, em um modelo oligárquico para administrar a relação médico-paciente, sem considerar os principais interessados que ainda eram submissos à ordem profissional, mantendo este modelo até a consternação mundial com o abuso perpetrado por médicos no regime nazista, e em outras situações históricas envolvendo a pesquisa com seres humanos. É somente na segunda metade do século XX que por meio de lutas sociais por direitos humanos, gerando pactos e declarações nacionais e universais, a humanidade, na condição de vulnerabilidade, tem seus direitos minimamente assegurados, tais como autonomia para decidir sobre o tratamento proposto, pelo prognóstico, pelo inicio e fim da vida, e a justiça relativa à distribuição de recursos à saúde que tem garantido qualidade de vida a grupos antes condenados à escuridão das diferentes fases e faces do preconceito.
A medicina, profissão de tradição milenar humanitária tem tentado se adaptar, não sem sangrar e sofrer, a estas transformações que exigem o esforço corporativo de suas instituições e lideranças, no campo da técnica e do ensino, para reconhecer seus limites éticos no tempo da globalização, do interprofissionalismo, do individualismo consumista, do moralismo encobridor da ética perversa, e transformar-se para reconhecer que os direitos dos pacientes, em sua condição de fragilidade, são mais importantes que os de subjugá-los a preceitos e fórmulas adaptadas ao nosso tempo, e que serão modificadas permanentemente, como a própria vida. Assim, o CFM tem participado e muitas vezes liderado, e compartilhado de decisões que afetam o nosso bem estar, nossos modos de convivência com o próprio corpo e com os demais, posicionando-se a favor do aborto terapêutico, do consentimento informado na pesquisa e na relação com o paciente, do testamento vital, da cirurgia de transexualidade, da pesquisa com células tronco, do uso compassivo de canabidiol para crianças com epilepsia refratária a outros tratamentos.
Temos, no entanto, que enfrentar outros aspectos da vida pessoal e profissional, dependentes da necessidade de equilíbrio entre a proteção pessoal e do paciente, das comunidades e da nação, retomados com o processo de redemocratização e tornados campo de conflitos em função do desenvolvimento mesmo das profissões, da ciência e da tecnologia, e da hegemonia do capital em sua face atual neoliberal que financeiriza a vida.
 É um desafio permanente promover a maturidade profissional para compreender as mudanças mais gerais nos códigos de leis que devem proteger toda a nação, e assentando-se em bases democráticas garantir a constituição do laço social ampliando direitos e a proteção necessária aos mais vulneráveis, no caso da medicina e demais profissões de saúde a proteção prioritária aos grupos com vulnerabilidade biologica, economica, social, adaptando os códigos específicos corporativos às novas realidades.
Neste sentido, a atenção primária às comunidades carentes é prioridade e devemos concentrar esforços para sua ampliação com a qualidade necessária, realidade ainda distante. É nossa responsabilidade apoiar a qualificação dos preceptores da rede SUS, e ampliar a presença de graduandos e residentes na atenção primária. Bem como, para o exercício interprofissional solidário e de garantia da autonomia dos usuários devemos investir na formação e prática que ultrapasse a ética profissional dos deveres para considerar a reflexão sobre a vida em uma perspectiva bioética latinoamericana.
Portanto, caros formandos a medicina nunca foi exercida de forma igual em todas as etapas da civilização e regiões do planeta, e hoje o desafio maior é encarar a fragilidade da vida individual e social, e com a força humanitária que sempre guiou o exercício profissional, entender que o corpo vivo do qual falamos é o corpo social, o trabalho para a vida é o solidário e interprofissional, e a ética profissional deve estar subjugada à ética da vida e do respeito ao outro.
Se não conseguimos nestes seis anos faze-los compreender estes novos papéis é porque a medicina não apresenta unidade em seus interesses, estando ainda subjugada aos interesses comerciais que reduzem a vida a bens negociáveis. Que não seja esta a última aprendizagem sobre o exercício ético profissional, e não entendam como conselho, mas sim como advertência para que não sofram as consequências no próprio corpo da inflexibilidade de quem não consegue adaptar-se ao mundo do trabalho em saúde como é hoje, e se refugia no isolamento arrogante de papéis do passado.
A universidade para os discentes é como um conto de fadas muito diferente do futuro mundo do trabalho. Nela entramos como em um livro mágico e conhecemos outros personagens dando sentido a enredos individuais que se entrelaçam em uma história maior, que conta a historia de cada um de nós. Tramas de amizades, amores, intrigas, decepções, revelações, autodescobertas, entre amigos, paixões e revoltas com os professores, aprendizagem de autonomia e papéis adultos renegociados diariamente com os pais e amigos, preparatórios para as despedidas como esta que acontece hoje. Enquanto celebramos a conquista dizemos que estamos prontos para a partida, para deixá-los partir. Ficamos com a lembrança da marca singular que cada um conferiu neste enredo de trocas afetivas que permitiu a aprendizagem dos limites de uma profissão e de si.
Cabe a vocês, jovens médicos um legado de conhecimento milenar para viver com a mesma alegria vivida na universidade, e a partir de agora contribuir para transformar as práticas do cuidado em saúde em relações que promovam uma sociedade igualitária e eticamente saudável.
Parabéns a todos, e aos familiares, pela conquista. Sucesso e felicidade em suas futuras escolhas.




terça-feira, 13 de janeiro de 2015

DISCURSO NO ATO DE COLAÇÃO DE GRAU DE BACHAREL EM MEDICINA - TURMA 2014.2


DIA: 18/12/2014
É com a satisfação do dever cumprido, que vos apresento para o trabalho social, para a autonomia profissional e pessoal, para a responsabilidade cidadã, para o cuidado ético e humanizado dos outros e de si, a turma de bacharéis em medicina 2014.2.
A Faculdade de Medicina sente-se orgulhosa deste dia, por termos conduzido e apoiado o desenvolvimento de competências técnicas profissionais e ético-humanitárias a este grupo de jovens idealistas.
Com a atenção vigilante e a mão amiga de docentes comprometidos com a responsabilidade técnica de formar médicos, acrescentamos também à formação valores e princípios que abrem caminhos para uma prática médica solidária.
Jovens no inicio da formação e ainda hoje, aprenderam principalmente que, na era da velocidade, do descartável, da hegemonia da técnica e da ciência sobre os valores espirituais, o trabalho em equipe, o respeito ao outro, o privilégio da escuta na comunicação, proporcionam respostas, que no contexto apropriado, são tão satisfatórias e complexas quanto qualquer exame de ressonância magnética em contextos hospitalares. E mais ainda, que nos complexos hospitalares é preciso saber dar a boa e a má noticia; que o cuidado é mais eficaz quando as ações profissionais autônomas organizam-se de maneira dialógica, em torno de um objetivo comum: a pessoa sob cuidado, suplantando a vaidade e a ambição, quando são regidas com a melodia suave da compreensão mútua interprofissional.
Conviveram e aprenderam com a dura realidade das comunidades pobres na periferia de Maceió, mal assistidas em seus direitos inalienáveis de viver com dignidade: moradia, saneamento, segurança, educação, saúde, lazer. Esta experiência deverá ter servido como alicerce à crítica social, para o desenvolvimento de valores solidários e compassivos, e para a ação política que enseje a redução da desigualdade social.
Esta foi a nossa missão, cumprida com rigor nos diferentes contextos: HGE, Hospital Portugal Ramalho, Hospital do açúcar, Maternidade N. Sra. Da Guia, Hospital Artur Ramos, Hospital Universitário, Unidades Básicas de Saúde do município de Maceió, Arapiraca, Penedo, Branquinha, São José da Lage, Marechal Deodoro. Diferentes contextos, cenários, complexidade de atenção, equipes, diferentes comunidades, usuários, com suas diferentes histórias de vida e de modos de sobreviver e adoecer. Lugares de convivência harmoniosa e solidária com docentes e preceptores, usuários e técnicos hoje aqui representados, e ao longo da semana homenageados, exemplos para lembrar por toda a vida.
O Curso de Graduação em Medicina da UFAL tem como perfil do formando, o médico com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, com competência para atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano.
Nosso maior desafio tem sido responder às críticas que dizem respeito à desumanização da medicina. Não fugimos à nossa responsabilidade de mudar e, desafiar aos demais setores da saúde, para olhar de frente também suas próprias práticas de cuidados, e desafiar também a sociedade que permanece acrítica diante de decisões ou da falta delas que afetam diretamente a qualidade do ambiente e da vida individual, familiar e comunitária. Não basta reformar currículos médicos, sem reformar os demais, não basta importar médicos sem oferecer estrutura que qualifique o cuidado, não basta abrir escolas médicas, sem a devida certificação da qualidade do ensino. Somos todos responsáveis por esta nação corrompida, usurpada, atingida gravemente nos princípios basilares da cidadania.  Não apenas os médicos, más todos os cidadãos devem participar da cura desta ferida aberta que corrompe todos os alicerces e ameaça a democracia.
Cumprimos a nossa parte, e hoje entregamos à sociedade médicos com competência e consciência crítica da realidade, capazes de escolhas entendendo que em suas trajetórias individuais, suas ações afetam e são afetadas pelas escolhas dos demais, que somos um todo complexo e indissociável, que é possível refazer o tecido social com o cultivo dos valores éticos comunitários e da espiritualidade necessária nos mínimos atos cotidianos, abandonando o antigo jeitinho brasileiro de levar vantagem em tudo.
Ou continuaremos no caminho da barbárie em que vemos o outro como inimigo e o meio ambiente como um imenso depósito do lixo de nosso egoísmo; aumentaremos nossos muros, grades de proteção, ampliaremos nossos mecanismos de vigilância, contrataremos cada vez mais exércitos de seguranças. E ainda assim veremos que nada disso nos afastará da insegurança e dos efeitos perversos da indiferença.
Senhores, senhoras, meus caros formandos, sabemos que a universidade é uma experiência curta, transitória, de forte influência no desenvolvimento do caráter, más não é a única, nem definitiva. A responsabilidade da formação e da consequência dos atos de cada um dos formandos desta turma e de qualquer outro formando neste país, é de cada um de nós, más a partir de hoje é principalmente deles.
Nós somos os resultados de nossas escolhas. Caros formandos vocês escolheram ser médicos, e nós os apoiamos durante seis longos e breves anos. Honrem a promessa hipocrática, defendam a democracia, a justiça, os direitos humanos, e sejam prósperos e felizes.
Muito obrigado aos familiares pela confiança, e a vocês pela aprendizagem mútua em todos estes anos de convivência.



                                    




domingo, 7 de dezembro de 2014

O TRABALHO SOLITÁRIO DA GESTÃO E A TEORIA MORAL DE KOHLBERG



                           Toda gestão é considerada como desafiadora, as relações humanas constituindo-se como seu principal desafio. Além disso, o trabalho solitário de responder das demandas dos níveis superiores hierárquicos, à burocracia, ao cumprimento de rituais, muitas vezes destituídos de outro sentido que não seja amargar horas a fio a companhia de outros colegas que mais parecem saídos de um almanaque antigo, e mais atualmente, ao cada vez mais imperioso e obrigatório apelo de colegas ou grupos articulados em defesa de algum interesse particular, ou de estudantes mimados e que não sabem mais reconhecer os limites e a vida como uma infinita teia de relações, afetos, interesses comuns, faz do trabalho na gestão de uma escola médica uma necessidade de aperfeiçoamento pessoal, no sentido ético e moral. Para responder a cada semideus com seus propósitos individuais, aos discursos egoístas mal dissimulados de altruísmos repentinos, às práticas cotidianas de burlar a responsabilidade de educar como tarefa civilizatória e não reprodutora apenas de valores de dominação e perpetuação de uma classe ou categoria sobre outra(s), até a mais simplória e inútil, pelo menos para mim, tentativa de ludibriar com promessas de planos de atividades, e atividades sem planos, desde que coerentes com o que pensam ser o que o gestor gostaria de ouvir, para ter seu plano individual de ação, geralmente egoísta, atendido sem restrições. O plano político-pedagógico e a missão da instituição são usados como a própria constituição brasileira, um símbolo necessário para dar corpo à unidade nacional, más um ente abstrato e mal interpretado em favor de interesses particulares, apresentados então como missão e planos individuais que não se enodam para dar conta a um corpo institucional integrado: projetos individuais que se somam mas não se articulam, não se tocam, não se interpenetram para constituir uma unidade, autônoma, composta por um projeto maior desenhado em sua missão e seu plano político-pedagógico que deve ser considerado e constituído como um plano ético. O plano ético, maior, poderá nos direcionar para responder aos interesses particulares, enodados, compartilhados, em comunhão. Planos dissociados, interesses particulares, induzem ainda à perpetuação de concepções limitadas, muitas vezes errôneas ou reflexos de interesses corporativos, de corpo e saúde, que se refletem em práticas docentes fragmentadas, em uma educação em que o exemplo moral do docente e a responsabilidade da instituição são percebidos pelos discentes como uma máscara necessária para adentrar no mundo adulto, do trabalho, com cinismo, dissimulação, e uma boa dose de indigência moral.
Kohlberg desenvolveu uma teoria da moral escalonando-a em estágios evolutivos que incorporam os anteriores até o estágio de transcendência em que a vida comunitária e a espiritualidade determinam os valores de uma ação moral, para que em comunhão, compartilhemos nossos conhecimentos, organizemos as nossas ações, de mãos dadas, como uma só voz, um só corpo, beneficiário e beneficiando de um projeto comum. Não é mais possível, acreditar apenas nas palavras e nas meias ações que encobrem os interesses particulares, egoístas, fontes de sofrimento pessoal e de efeitos morais públicos que desfazem tijolo a tijolo, o edifício dos ideais iluministas de civilização pela educação e pela ciência.
Por isso, o gestor deve ser comprometido com sua própria formação moral e ética, e responsabilizar-se diante da demanda individual, egoísta, oferecendo respostas, compatíveis com um nível acima do estágio moral apresentado: surpreender, abrir espaço à perplexidade, à reflexão, devolver como um presente a negação, e o espanto.  


terça-feira, 28 de janeiro de 2014

MENSAGEM PARA A TURMA DE FORMANDOS 2013.2


Começarei meu discurso como uma retribuição à homenagem de vocês feita aos mestres, agradecendo mais uma vez a  todos o privilégio e a graça de ter convivido estes seis últimos anos em harmonia e clima de amizade e respeito. “Hoje, sabemos que nossos melhores mestres não foram os que ensinaram as respostas, mas, sim aqueles que nos ensinaram a questionar, a duvidar, a pensar e a sonhar”. Estas são as palavras de homenagem aos mestres, impressas no convite de formatura. Belas e dignas palavras de reconhecimento do trabalho de uma equipe, que com todas as dificuldades e diferenças, desde o inicio da reforma curricular vem aperfeiçoando a arte de educar com qualidade e afeto. Portanto, muito obrigado pelas palavras e pelos gestos carinhosos de despedida trocados desde o inicio desta semana.
O que é educar senão acolher e propiciar o máximo possível o desenvolvimento potencial de um individuo ou de um grupo para a responsabilidade pessoal, familiar, comunitária e social, para que encontrem o caminho do cuidado de si e da ação solidária, da construção da paz e da tolerância; para que contribuam para a justiça social participando como agentes ativos nas desigualdades regionais; para o compromisso com a ética nos mínimos atos cotidianos e com a verdade nas relações para que as crianças testemunhem e confiem no processo civilizatório mediado pelos cuidados dos adultos; e para que possam criar, complementar, modificar ou refazer, o que não tivemos ainda coragem, força, ética ou conhecimento suficientes. 
Falo de educar para os sonhos, projetos, ideais comuns que podem transformar e deixar marcas civilizatórias, que nos confiram autonomia como indivíduos e como nação. Falo da reconstrução do laço social desfeito nas grandes cidades, em que são mais visíveis os muros, as câmeras de vigilância e cercas eletrificadas que os espaços de convivência, para que se restabeleça a confiança e os gestos de amizade e carinho, e os sorrisos espontâneos possam novamente prevalecer.
Falo de educar para além da técnica e dos conteúdos programáticos agora reduzidos a protocolos e diretrizes até para o que se pretende como humanização.
Falo de um projeto de educar para a cidadania responsável, para a vivência comunitária como possibilidade de escapar à pressão da financeirização da vida cotidiana em que nossos olhos somente brilham nos shoppings ou com lentes artificiais, e nossos sorrisos são postos na face pelo último antidepressivo no mercado ou congelados pelas injeções de botox.
Como Sísifo, estaremos a tentar, sem trégua, responder aos desafios impostos pelas contradições dos arranjos de poderes sociais, locais e globalizados, legítimos e amorais, técnico-cientificos e ideologicamente comprometidos, produtivistas e exclusivistas, com a educação que considere as diferenças na origem de cada um, mas faça duvidar, questionar, ousar e sonhar com um mundo melhor como vocês sugerem como características docentes ideais.
Vivenciamos ainda um tempo histórico e social imóvel, muito semelhante aquele quando a elite da corte portuguesa desembarcou no Brasil fugindo das tropas de Napoleão. O fosso da desigualdade social permanece profundo, as elites vorazes continuam roubando impunemente, e a aparência de opulência da nação, hoje rica e faustosa, ostentando o sexto maior PIB do mundo, preenche um imaginário secular de “pais do futuro”. Muito rica a nação e muito pobre a maioria da população, nossa elite ainda parece aquela que desembarcou com roupas suntuosas e lenços na cabeça para esconder os piolhos, e leques para esconder os sorrisos enegrecidos pelas cáries. Hoje, esta elite expande seus interesses sobre a saúde apropriando-se não dos bens materiais públicos, que permanecem públicos, mas em um acordo perverso em que mantendo a posse destes bens, permitimos a evasão de uma das fatias mais gordas do erário para a iniciativa privada: a verba relativa a gestão de 51 hospitais universitários federais.
Como médicos e educadores temos que dar conta dos efeitos inevitáveis de uma organização política e social perversa que só enxerga indicadores econômicos e de consumo de bens/coisas. Chico Cesar filosofa cantando “coisas tem um brilho no começo/más se viro pelo avesso/são fardos prá carregar”.
Esta forma de viver tem ampliado os medos à dimensão da paralisia cívica ou da anestesia moral social. Vivemos uma crise ética sem precedentes. Freud afirma em “O mal estar na civilização” que três medos nos impedem viver sem sofrimento: as forças da natureza, o desgaste natural do corpo, e as relações sociais. Para Hobbes, na natureza humana, três motivações levam a disputas e ao isolamento social: competição, desconfiança e glória. O mundo unidirecionado pelo capital em sua forma mais atual, neoliberal, encontra em países periféricos como o Brasil, espaço para espoliar não apenas as reservas naturais, mas também fragilizar as instituições, e ainda assim administrar a desconfiança generalizada com tranquilizantes, câmeras de vigilância, condomínios isolados, segurança armada, e claro, promessas, muitas promessas. Talvez, por isso, sejamos o país do futuro, porque aguardamos eternamente pelo fruto prometido. O Estado autocrático em que vivemos, a democracia para os ricos, não permite mais a confiança, más permite que se administre seus efeitos ilusórios, de completa liberdade, acompanhada de insegurança, desconfiança e medo.
A resposta do governo aos anseios da onda popular, jovem, que nas ruas abalou os alicerces da coalizão política de apoio, com a criação do programa mais médicos, serve bem à reflexão sobre os propósitos do capital: em menos de dois anos, mais de treze mil médicos prescrevendo antibióticos, tranquilizantes, e outros medicamentos, farão a felicidade da industria farmacêutica, enquanto satisfazemos a compulsão de consumo, alimentamos o comportamento aditivo, ainda que de consultas e drogas legais. No entanto, caridade somente não justifica nem resolve problemas estruturais sociais profundos que reclamam reformas urgentes.  Más, é preciso girar a roda da fortuna, para que a atenção primária, brevemente esteja sendo administrada também por empresas públicas de direito privado. A PEC, para este fim, já foi aprovada, em novembro passado.
Despeço-me de vocês, com uma tentativa última de compensação para esclarecer com uma síntese impossível, os desafios contemporâneos impostos para o exercício da medicina, premido pelo tempo e pelas circunstâncias, e com a certeza de que nunca saberemos tudo, que é impossível apreender a realidade, que a interpretamos com os recursos possíveis na classe social em que nos situamos. Procuro mostrar a realidade e seus desafios, desvelar as verdadeiras intenções das boas ações no mundo capitalizado, para que entendam que é na história, nas ações coletivas, no contrato social regido pela razão, que as soluções de paz serão estabelecidas.
Más, retorno às palavras de vocês citadas no inicio, “questionar, duvidar, ousar, sonhar” para que nos despeçamos com a ternura exigida para os momentos difíceis, a marca deixada pelo mais lembrado dos médicos pelos jovens, o revolucionário argentino Che Guevara. Para que vocês se lembrem nos momentos mais duros da lida profissional, que o sofrimento alheio tem nome, cor, origem social, história; que vocês também tem limites físicos; que vocês tem na memória afetiva profissional, identificações ou exemplos para lembrar e espelhar no futuro para as novas gerações, pois a ética humanitária social ainda prevalece e tem na família e na escola a guarda do fogo sagrado do conhecimento responsável, cidadão.
Qualquer que seja o caminho que o desejo os leve a percorrer, e a personalidade que expressem na maturidade, será nos traços identificatórios positivos, nos exemplos éticos, que vocês encontrarão a solução para equilibrar a racionalidade fria da ciência e a amorosidade acolhedora aprendida com o exercício da fé, e dos afetos familiares, dos amigos, e dos educadores. É nesse intervalo, entre o acionamento da razão e do afeto, em um cantinho da memória afetiva de cada um que desejo estar para ser lembrado, quando diante dos desafios diagnósticos e terapêuticos, como acontecia nas reuniões tutoriais: você sabe alguma coisa, complemente pesquisando, discuta com os colegas de plantão, ninguém sabe tudo sozinho, raciocine, associe, e então descobrirá a reposta. Ela está em você, em vocês. 
Desejo que vocês saibam conquistar a felicidade que cada um, a categoria, e a humanidade merece.
Finalizo, agradecendo a vocês e a seus familiares a confiança e o convívio que nos proporcionaram, como docentes, prazer e desenvolvimento profissional.

Muito obrigado, sucesso e felicidade para todos.

MENSAGEM PARA A TURMA DE FORMANDOS 2013.1


Encontramo-nos hoje, aqui, para cumprimento do ritual que vos conferirá o grau de bacharel em medicina permitindo-vos o exercício ético-profissional da arte e da ciência de curar, rehabilitar e prevenir doenças,  e promover  a saúde individual e comunitária. Cuidamos de vocês, ensinando e educando com os recursos físicos e humanos que nos foi possível para que a partir de agora, a nobre missão de cuidar e compreender, de apoiar e ajudar o semelhante, sem distinção econômica, de raça, idade, origem, ou gênero, seja também partilhada com e por vocês. Vocês desejaram, competiram neste mundo desigual e, após uma multiplicidade de estágios e avaliações, como jamais vivenciado antes no curso médico, conseguiram superar os desafios, e hoje estão aqui vitoriosos.
No entanto, para que a vitória seja duradoura e permanente será preciso: cuidar da atualização permanente, da troca de experiências; atentar para a ação politica, zelando pela ética profissional, individual e corporativa, nos sindicatos e conselhos de classe, e demais entidades em que se fizerem representados e representantes; cuidar dos outros como cuidaria de si e de seus familiares; e cuidar de si como cuidará dos outros.
Respeito, ética, honestidade, solidariedade, ousadia, e também uma certa dose de desapego, em equilíbrio com a ambição, característica humana, natural e estimulada no mundo capitalizado, reduzirão a frustração, a ansiedade, e trarão satisfação pessoal suficiente para compor um roteiro de vida exemplar para a comunidade em que elegerem viver, e prepararão um mundo mais receptivo e acolhedor para seus futuros filhos.
Parece que não encontramos satisfação, hoje, sem o glamour e o artificio associado às imagens e prazeres transitórios, fugidios. Más não encontraremos satisfação maior e duradoura se não conferirmos glamour às relações de amizade e companheirismo, em todos os ambientes de convívio, e se não nos fizermos reconhecer pelo que nos é mais característico como profissionais médicos: a qualidade do cuidado, a solidariedade, a empatia, a responsabilidade com a vida.
A felicidade e a honestidade tem algo em comum, algo de precário na condição humana que as torna instáveis, alternantes, temporais, fugazes, necessitando disciplina para alcança-las, um esforço ético para espelhá-las, e então gozar do prazer do reconhecimento em si, e pelos outros. É bom no sentido ético humano, e é saudável conviver com pessoas honradas e felizes. O contrário, promove conflitos e adoecimento.
Cuidar dos outros, pode ser, portanto, uma estratégia, um caminho, para desenvolver potencialidades latentes, que os eleve na condição humana, para bem cuidar de si. Para isso, é preciso aprender a escutar e compreender a dor do outro em sua condição humana, para além do sintoma imediato e da doença, e aprender a lidar com o que dizem de vocês. O que dizem de nós é real, naquilo que sintoniza com nossa auto-imagem positiva, e também no que destoa. O que interessa, é o que podemos e devemos fazer com isso.
Em questão, portanto, o desejo. Faço, digo, quero, nego, afirmo, disfarço, sorrio, choro, acolho, abandono; em tudo que pensamos, fazemos, ou deixamos de fazer, encontramos o desejo, a afirmação da individualidade e do grau de autonomia e maturidade de cada um em equilibrar o que queremos com o que podemos ou devemos.  O equilíbrio entre estes três verbos funda a ética, segundo o filosofo Mario Sergio Cortela. Nem tudo que eu quero, posso, nem tudo que posso, devo, nem tudo que devo, quero.
As instituições delegadas para o aprimoramento ético por meio da educação, e do zelo pelo cumprimento das regras profissionais, cumprem seu papel com eficácia quando em sistemas democráticos, plenos de direitos e garantias individuais.
Atualmente, assistimos e resistimos à intervenção no exercício profissional medico pelo governo, que age à revelia dos conselhos e entidades representativas da educação médica, nacionais e internacionais, como a conceituada SBPC e o Foro Iberoamericano de entidades médicas, com medidas precárias e autoritárias para resolver graves e seculares problemas de saúde pública, dependentes da indiferença das elites econômicas para com a maioria pobre, e da atividade predatória e impune sobre o erário.
A principal medida autoritária, já derrotada pela resistência cívica da categoria medica em todo o país, incluindo os educadores médicos, de estender o curso medico por mais dois anos e obrigar os recém-formados a trabalhar em condições estruturais precárias atenta contra a liberdade individual de escolha sobre os próprios caminhos, atinge o desejo, a ética da vida.
O governo deve sim regular o mercado para atrair profissionais distintos para áreas remotas, mas com condições dignas de trabalho, com plano de carreira e salário digno; com o reconhecimento das diferenças regionais sócio-economicas e epidemiológicas; com o respeito à soberania de um país que se desenvolve apesar da alternâncias dos grupos predatórios no planalto e nos estados e municípios; com o dialogo com as entidades representativas da educação médica para que a população não seja enganada com o preenchimento de vazios sanitários apenas com médicos, quando a solução dos problemas de saúde reclamam 10% do PIB já para a saúde publica, equipes multidisciplinares, estrutura física e rede de referencia e contra-referencia bem estabelecidas. Mas fundamentalmente precisamos com urgência de seriedade e coerência aos princípios que conduziram o PT ao poder para que possamos nos distanciar cada vez mais dos regimes autoritários.
As politicas para a saúde e para a formação medica tem sido descontinuas, quando parecem dar continuidade –  redução dos PETS e dos incentivos aos preceptores -; fragmentárias, quando parecem oferecer um eixo  norteador – ações para os médicos dissociadas das demais categorias -; reducionistas quando parecem ampliadas – não consideram o SUS em toda a sua complexidade -; privatizantes, quando aparentam atender ao público – 60% das escolas médicas são privadas, e o investimento é crescente em hospitais privados como o Sirio Libanês -.
No entanto, com este caos aparente o governo cria a ilusão de uma politica de Estado, sendo na verdade apenas medidas momentâneas, contraditórias, insuficientes para o real enfrentamento da situação de sucateamento da rede pública de saúde, a politica atual servindo somente para tamponar com eficácia reduzida os efeitos nocivos da anterior.
Como exemplo para reflexão temos no Brasil mais escolas de direito que em todo o mundo reunido, e nem por isso temos justiça social com o devido amparo aos mais vulneráveis por sua condição econômica.
Podemos perceber que o poder quando exercido com autoritarismo para maquiar a incompetência ou a subserviência aos predadores nacionais e internacionais da economia atinge a liberdade individual, e a ética do desejo.
Em todos os discursos anteriores, desde o inicio da minha gestão na direção da FAMED/UFAL, tenho afirmado a necessidade da sindicalização e da afirmação do próprio desejo na escolha do futuro individual, a despeito de uma reforma curricular que enfatizou para vocês a necessidade de envolvimento com a atenção primária à saúde.
Reafirmo hoje a primazia do desejo de cada um sobre as politicas maniqueístas para obriga-los ao exercício profissional na insegurança, e atender à vontade de reprodução de um exercício de poder perverso que não muda profundamente a estrutura de desigualdade social e econômica, e busca apenas a financeirização da vida.
Desejo que vocês desejem e cumpram seus desejos, que aprendam que o sucesso profissional depende do equilíbrio de nossos desejos mais egoístas com o bem da coletividade. 
E desejo que sejam felizes com as melhores escolhas que fizerem, porque vocês merecem.







quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O CONGRESSO DA ABEM E A PRISÃO DO MÉDICO PARANAENSE



A expectativa sobre o último COBEM – Congresso Brasileiro de Educação Médica – resultou em frustração e tomada de consciência pela maioria participante. Frustração por muitos motivos: a desorganização do congresso sediado em um centro de convenções necessitando reformas urgentes para eliminar o bolor e a sujeira acumulada ao redor; a apresentação de mais de cem pôsteres simultâneos a cada dia, gerando uma balbúrdia própria ao carnaval ou aos mercados e feiras populares como a do passarinho em Maceió, o que me fez desistir de apresentar importante reflexão sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais e gozar com o canto e a arte de Geraldo Maia, um passarinho mais agradável de ver e ouvir; a presença ostensiva e privilegiada de espaços físicos para empresas hospitalares de grande porte e alta complexidade financiadas com o dinheiro público, como o IMIP de Pernambuco e Hospital Sírio-Libanês de São Paulo; stand do programa Mais Médicos, em momento de conflito entre as entidades representativas dos médicos e o governo federal; em meio à desorganização, o uso de mecanismos de controle e vigilância sobre os participantes com funcionários uniformizados com máquinas de leitura digital para controle de frequência; a percepção de que os representantes do Ministério da Saúde detinham o controle sobre a programação do evento e ostensivamente pressionavam a direção da ABEM com falas que poderiam ser lidas como chantagem; falta de apoio aos discentes, que pela primeira vez em muitos eventos da ABEM não puderam dispor de alojamento, transporte e alimentação, dando a impressão de que era importante para a entidade desmobilizar a categoria discente e reduzir o contingente no evento em momento de conflito; discursos “educados”, ou domados, dos representantes das entidades ABEM e DENEM, enquanto os representantes do MS atacavam abertamente a categoria médica; presença de lideranças oriundas da DENEM hoje ocupando cargos ministeriais com discursos autoritários e manipuladores próprios a regimes fascistas.
A luz no fim do túnel pode ser vislumbrada quando os representantes do MS foram vaiados, e no fim do congresso os discentes articularam uma reação à presença das empresas hospitalares. Para Marx o aprofundamento da crise do capital permite reações que desalienam os oprimidos e põe em ação respostas organizadas e mais maduras dos movimentos sociais.
No entanto, a luz ainda está muito distante. A crise não é apenas política, ela é primordialmente ética. A ambivalência e os silenciamentos dos discursos da ABEM e da DENEM, e de alguns participantes do congresso, um certo arrefecimento das demais entidades representativas de médicos, e a ostensiva implantação do programa Mais Médicos, permitiu esta semana mais um lance de espetacularização midiática para a desqualificação da categoria médica, sendo apresentada em rede nacional a prisão em flagrante de um médico paranaense após operação policial de vigilância contínua por dias para verificação do ilícito. O coitado foi usado como o bode expiatório da vez para mostrar a força do aparelho do estado sobre a categoria escolhida como inimiga para se fortalecer diante de uma população desassistida hoje, principalmente de valores morais e éticos. Cumpre-se a promessa do representante da SGETES, feita na mesma Recife, este ano, no congresso da SBPC, de “descer o braço pesado do Estado sobre a categoria médica”. Nada diferente dos discursos de alguns colegas sanitaristas presentes ao COBEM que falavam que era melhor um copo meio cheio que vazio em apologia ao programa do governo. Tanta chantagem, ameaças, espionagem, e posições e discursos neutros, técnico-educacionais, complementam-se ampliando resistências e apassivamento de boa parte da comunidade docente e discente, em contraposição ao propalado nas DCNs de uma formação crítico-reflexiva. Além disso, fere-se um dos princípios fundamentais da ética de que os fins justificam os meios, e não o contrário.
Quanto à luz no fim do túnel, que os cientistas possam encontrar no túmulo do filósofo  Diógenes o cínico, células para sua clonagem e a lanterna para que ele redivivo possa continuar sua procura por “um homem” (honesto?) nesse país.